Folha de S. Paulo


Legado de Che Guevara divide vilarejo na Argentina 50 anos após sua morte

Dos 39 anos em que viveu neste mundo, Che Guevara passou 25 na Argentina, sendo 17 deles na província de Córdoba. Ainda assim, são poucos os que reivindicam a "argentinidade" desse líder revolucionário que causa tantas divisões. Quase não há referências a ele na forma de estátuas ou ruas no país.

Para muitos, Che Guevara, cujos 50 anos da morte completam-se nesta segunda-feira (9), é o herói da Revolução Cubana de 1959 e um ícone da luta por um mundo mais justo. Para outros, uma prova de como a implementação do comunismo no século 20 foi violenta e levou à criação de sistemas totalitários.

Mas essa discussão é posterior aos rastros que o Che deixou em Alta Gracia, no interior da Província de Córdoba, onde a Folha visitou a casa em que passou a infância e a adolescência e que hoje abriga o Museu Che Guevara.

Primogênito de uma família de posses e de sobrenomes tradicionais, o Che nasceu em Rosario um pouco por acaso. Seus pais, Celia de la Serna e Ernesto Guevara Lynch, haviam tido "relações pré-matrimoniais", o que era um tabu na Argentina católica dos anos 1920. Por isso, rumaram para essa cidade portuária para esconder o nascimento, depois anunciado à família como "prematuro", de seu primogênito, a quem chamavam de "Ernestito".

Depois de idas e vindas entre a capital do país e a Província de Misiones, onde Guevara pai investia em plantações de erva mate, a família foi levada a instalar-se em Alta Gracia, a 35 km da capital da Província de Córdoba.

Aos dois anos, "Ernestito" teve seu primeiro ataque de asma, doença que o acompanharia daí em diante. Os médicos portenhos recomendaram, então, a mudança para um local montanhoso, de ar mais seco e limpo.

O pequeno vilarejo aristocrático de Alta Gracia, cheio de casas construídas ao estilo inglês, foi escolhido por ser famoso em abrigar pessoas com problemas de pulmão.

"A população local ainda é composta de gente rica, portanto não aceitaram bem a ideia deste museu dedicado a um líder socialista. Mas hoje já virou um local de referência entre estrangeiros que seguem o rastro do Che, portanto nosso trabalho passou a ser melhor aceito", conta Carolina Isola, responsável por guiar as visitas no museu.

Com uma grande sala, três quartos, um escritório, amplo jardim e quartos para funcionários instalados no pátio, a casa mostra que o menino Che teve uma vida de bastante conforto. Porém, não de muita liberdade.

A doença o impediu, por exemplo, de ir à escola até os nove anos de idade. Foi alfabetizado pela mãe em casa e substituiu os jogos ao ar livre por leituras que foram tornando-se cada vez mais disciplinadas.

Prova disso são as agendas e cadernos exibidos no museu, que mostram como anotava os títulos e autores que ia lendo, junto a um pequeno resumo. "A doença fez com que ele tivesse uma infância regrada, com dietas, horários para dormir e descansar. Isso se transmitiu a seus hábitos", explica Isola.

Ainda assim, o Che foi um menino inquieto. Segundo companheiros da época, insistia em praticar esportes quando se sentia melhor, ainda que muitas vezes tenha tido de ser carregado de volta para casa por algum adulto.

Na biografia escrita por Jon Lee Anderson, conta-se que a casa dos Guevara em Alta Gracia era famosa por receber forasteiros para as refeições. Entre eles, havia famílias espanholas que fugiam das consequências da Guerra Civil (1936-1939).

Os pais do Che eram anti-clericais e progressistas, mas não davam mostras de simpatizar com o socialismo nem de se envolver com as discussões políticas da Argentina da época, que começava a ver o nascimento do peronismo.

O próprio Che, até a adolescência, tinha como referências políticas apenas os eventos internacionais dos quais os pais conversavam. Na sua escrivaninha, armava mapas da Espanha e da Europa e marcava a posição dos Exércitos segundo as histórias que ouvia. Na escola, era impetuoso e apontava erros de professores de tendência conservadora ou fascista.

Em Alta Gracia, os Guevara viveram de 1930 a 1943. Na capital da província, Córdoba, até 1947. Neste segundo período, o Che teve o primeiro contato com a pobreza.

A família viveu numa casa da rua Chile, hoje uma movimentada via comercial. Próximo dali, havia um bairro de população humilde, que chamou sua atenção sua para as diferenças sociais. Seu despertar político, porém, só se concretizaria mais tarde, com suas incursões em motocicleta pela América Latina.

Entre 1948 a 1953, o Che viveu em Buenos Aires, onde estudou medicina e de onde partiria para suas viagens de exploração e, posteriormente, para suas atividades revolucionárias, até seu trágico destino final.


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