Folha de S. Paulo


Regra dos anos 1920 sufoca vida noturna da cidade de Nova York

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Noite de festa na boate House of Yes, no Brooklyn
Noite de festa na boate House of Yes, no Brooklyn

Era noite de Ano-Novo. Debaixo de uma linha de trem de superfície em Nova York, o Bossa Nova Civic Club, um inferninho todo preto que de banquinho e violão não tem nada, tremia ao som de música tecno. Festeiros se esbaldavam até a invasão de uma turma que não estava na lista VIP.

"Eles chegaram desligando a música, acendendo as luzes, mandando todo mundo parar de dançar", diz John Barclay, o dono da boate no Brooklyn, sobre o dia em que, em nome da lei, os policiais acabaram com sua festa.

Desde o episódio, plaquinhas discretas coladas ali informam o impensável numa boate -é proibido dançar. "Fui parar num tribunal por causa disso", lembra o empresário. "Isso é uma vergonha para os nova-iorquinos."

Uma lei que exige de bares e baladas uma licença especial para operar com uma pista de dança existe em Nova York desde a década de 1920, quando vigorava a Lei Seca.

"Era um tempo muito conservador e racista", diz Greg Miller, um dos maiores ativistas a favor da derrubada da medida e fundador do Dance Parade, grupo que defende o direito à dança em Nova York.

"Essa lei surgiu para controlar os negros, para não deixar que chegassem perto das mulheres brancas nos bares de jazz. Diziam que, quando as mulheres dançavam, o Diabo se apoderava delas."

Endiabrados ou não, baladeiros nova-iorquinos passaram anos dançando sem nunca saber da regra. Mas ela voltou à baila com a gentrificação que reconfigurou partes da cidade na última década.

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Frequentador da House of Yes, uma das casas nova-iorquinas que funcionam sem licença
Frequentador da House of Yes, uma das casas nova-iorquinas que funcionam sem licença

'COLONIZAÇÃO'

"Tem gente que fala em gentrificação, mas eu chamo de colonização", diz Ali Coleman, um DJ desiludido com os rumos que a noite tomou. "Os lugares onde a gente fazia festa foram colonizados pelos engravatados. É muito difícil uma boate sobreviver em Manhattan."

Enquanto empresários da noite, uma indústria que movimenta por ano cerca de R$ 30 bilhões na maior metrópole americana, lutam por mudanças na legislação, associações de moradores de bairros que ficaram caros demais vêm usando a lei dos cabarés, como ela foi apelidada, para banir os inferninhos e as boates em seus quintais.

Depois de décadas quase esquecida, a regra voltou a ser imposta com todo o rigor nos últimos dez anos, no rastro de uma série de episódios de violência envolvendo seguranças de boate e clientes que beberam demais.

O resultado foi uma perseguição à vida noturna em Nova York, que viu um quinto de suas boates sumirem do mapa. Clubes históricos, como o Studio 54, o CBGB e o Mudd, viraram memórias.

Outro efeito foi a debandada da vibrante vida noturna de Manhattan para velhos armazéns industriais do Brooklyn, convertidos em boates clandestinas, já que não têm a licença para abrigar pistas de dança -as permissões são raríssimas, cobrindo só 200 dos 20 mil negócios da noite.

"Manhattan perdeu a alma com o domínio das grandes empreiteiras e da máfia do dinheiro", diz Mike Tummolo, que organiza uma festa sobre rodas em ônibus que serpenteiam por cantos distantes do Brooklyn, para fugir da vigilância. "Por isso, o underground está se legitimando."

Em busca daquela alma perdida, outra festa do DJ ocupa uma igreja, onde mulheres fazem topless e homens se contorcem diante do altar.

"Isso aqui é para se libertar de tudo", dizia Tummolo, entre enormes boias coloridas espalhadas pelo templo. "É sem sapato, sem roupa, sem celular. É pela energia."

SECRETARIA DA NOITE

Foi num desses endereços distantes do radar da lei, aliás, que as coisas parecem ter começado a mudar de figura.

Na House of Yes, um galpão -sem licença para ser danceteria- com um urso empalhado e enormes olhos de fibra de vidro emoldurando uma estação de metrô no Brooklyn, o prefeito Bill de Blasio assinou há um mês um decreto que institui uma espécie de secretaria de defesa da vida noturna na cidade.

No topo da lista de afazeres da autoridade das baladas está acabar com a lei dos cabarés e nomear uma espécie de embaixador notívago, um responsável na administração pública por garantir direitos e deveres dos empresários e clientes das baladas.

"Existem mudanças importantes no horizonte. Nos últimos anos, houve retrocessos na cultura da noite por causa de leis que remetem a um tempo muito racista", diz Erica Ruben, candidata ao novo cargo de burocrata da noite. "Muitos nova-iorquinos percebem que é importante superar essa parte terrível da nossa história."

Enquanto a lei dos cabarés não vai para a lixeira, DJs e notívagos de Nova York sonham com o momento de dançar até cair. "Até guardei a caneta que o prefeito usou para assinar o decreto da secretaria das baladas", conta Coleman, o DJ. "Se a noite fosse uma religião, Nova York ainda merece ser sua Meca."


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