Folha de S. Paulo


Opinião

NFL reage a Trump abraçando sua diversidade

Os jogadores da NFL (a liga nacional de futebol americano dos EUA) ficaram de pé, se ajoelharam, ergueram os punhos, se sentaram, se abstiveram... fizeram o que lhes pareceu certo.

Fizeram, na maioria dos casos, como time, um grupo de pessoas que escolheram jogar juntas e sacrificar-se umas pelas outras.

Enquanto era tocado o hino nacional, eles não agiram como uma massa que passou por lavagem cerebral e que abriu mão de sua diversidade só para vestir o mesmo uniforme.

Essa é uma maneira superficial de enxergar o conceito de time e seria uma maneira superficial de enxergar os modos diferentes como agimos, como cidadãos americanos. É preciso entender isso para captar a força e importância de um dos domingos mais significativos na história da NFL.

Em todo o país e também em Londres a liga de futebol reagiu às críticas abrasivas, chulas e ignorantes do presidente Donald Trump, mostrando a ele duas coisas que ele, como líder, não compreende nem consegue inspirar: empatia e união.

Independentemente das reações contrastantes, a NFL se mostrou unida, os jogadores com os braços entrelaçados, negros e brancos, Ravens e Jaguars, Buccaneers e Vikings. Alguns proprietários de times chegaram a posicionar-se em campo ao lado de seus jogadores.

Todos os outros fizeram a chamada para saber: quem está protestando? Quem não está? Qual foi a opção feita por Tom Brady e outros grandes craques? Mas, como vem sendo o caso desde que Colin Kaepernick iniciou sua manifestação, no ano passado, o ato é apenas um outdoor provocante para transmitir uma mensagem importante.

Nesse dia, quando o futebol sempre domina nossas atenções, as ações da NFL aludiram a necessidades humanas fundamentais das quais grande parte da América parece ter se esquecido.

A declaração predominante foi simples, pelo menos para as pessoas que têm a decência necessária de resistir à tentação de agir como Trump e tachar de "filho da puta" um atleta que protesta contra a brutalidade policial e a desigualdade. Foi uma declaração de preocupação com a pessoa que estava ao lado de cada um e um esforço para mostrar que união não requer ofender e humilhar outras pessoas para forçá-las a pensar como você pensa.

Num comício político em Alabama, na noite de sexta-feira, Trump gritou: "Vocês não adorariam ver um desses donos de times da NFL, quando alguém desrespeita nossa bandeira, dizer 'tirem esse filho da puta de campo agora, já! Fora! Ele está demitido. Está demitido! Sabe, algum dono de time vai fazer isso. Ele vai dizer 'aquele sujeito desrespeitou nossa bandeira. Está demitido.' E aquele dono vai ser a pessoa mais popular deste país."

É tudo parte da nova agenda de Trump: colocar o mundo esportivo em seu devido lugar –um mundo que, por acaso, é cheio de atletas ricos, muitos dos quais são membros de minorias étnicas, que têm uma base enorme de fãs e não têm medo de pensar independentemente.

Como é que Jemele Hill, da ESPN, ousou chamar Trump de "supremacista branco", mesmo ele tendo tratado membros da Ku Klux Klan e neonazistas em Charlottesville, Virgínia, com mais respeito do que tratou Steph Curry?

Como é que Curry e o time Golden State Warriors não se derretem de alegria com a oportunidade de visitar Trump na Casa Branca? É assim, é? Então retiro o convite!

E como é que esses bobos da corte da NFL ousam expressar preocupações com a igualdade? Fiquem em pé para honrar a bandeira! E, já que estamos falando de futebol americano, vamos mudar as regras de volta para como eram antes e deixar que eles quebrem a cabeça como acontecia nos bons velhos tempos!

Brendan Smialowski - 22.set.2017/AFP
This file photo taken on September 22, 2017 shows US President Donald Trump speaking during a rally for Alabama state Republican Senator Luther Strange at the Von Braun Civic Center in Huntsville, Alabama. President Donald Trump triggered a backlash from the US professional sports world on September 23, 2017, withdrawing a White House invitation to the NBA champion Golden State Warriors after condemning NFL players protesting the national anthem. A day after Trump had decried activist National Football League stars as
Presidente americano Donald Trump discursa em comício do partido republicano no Estado de Alabama

Que importância tem para o presidente atual se mais um atleta está sofrendo de ETC (encefalopatia traumática crônica) e cometendo suicídio? Isso está tão lá embaixo em sua lista de prioridades quanto os temores dos oprimidos.

Não deveria nos chocar o fato de Trump se importar tão pouco com os jogadores da NFL. Eles são apenas as mais recentes em uma longa lista de pessoas que ele gostaria que calassem a boca e deixassem que vida lhes fosse empurrada goela abaixo.

À primeira vista, parece que a mensagem teria sido mais forte e mais radical se todos os jogadores da NFL tivessem se ajoelhado, ou saído de campo enquanto era tocado o hino nacional, ou tivessem deixado de comparecer, como fizeram os times Seattle Seahawks, Tennessee Titans e todos menos um dos jogadores do Pittsburgh Steelers (o técnico Mike Tomlin disse que o ato dos Steelers não foi um protesto, mas uma decisão de resistirem a serem forçados a fazer qualquer coisa).

Mas, no clima hoje vigente nos Estados Unidos, ficar de braços entrelaçados e demonstrar respeito pela pessoa ao lado –quer ela esteja usando seu direito constitucional de expressar-se pacificamente ou optando por homenagear a bandeira– é algo profundo.

No que ela tem de pior, a NFL é uma liga controladora e manipuladora.

Tenho escrito sobre suas atitudes frustrantes ao longo dos anos. Mas neste momento, com Donald Trump vomitando veneno e os jogadores precisando de um norte, o cartola Roger Goodell ajudou a tornar o domingo especial, entrando em contato com os donos de times, o diretor executivo da Associação de Jogadores da NFL, DeMaurice Smith, e outros para assegurar que a liga reagisse de maneira ponderada.

Em muitos estádios os torcedores vaiaram os jogadores que se ajoelharam e gritaram palavras de ordem mandando-os respeitarem a bandeira.

Era previsível, depois do discurso de Trump na noite de sexta-feira. E é um direito que cabe a esses torcedores, graças à Primeira Emenda. Protestar contra o hino nacional, com a bandeira hasteada, é um gesto complicado e que enfurece as pessoas. Mas essa é a essência de um protesto.

Se você fechar a boca, não manifestar o que sente e obedecer todas as regras, ninguém vai tomar nota ou dar a mínima para a causa em que você acredita.

A desobediência chama a atenção. É lamentável, mas os atletas não estão se manifestando por mais dinheiro. Eles querem que nosso país pare de desrespeitar a igualdade de direitos. Você pode rejeitar o sentimento, mas é essa a origem do desentendimento. E é pouco provável que essa insatisfação termine se o problema não for reconhecido francamente.

Kaepernick está fora de ação, fora da NFL e não está interessado, por enquanto, em dar entrevistas para falar da situação em que ficou por ser o atleta de nossos tempos que promoveu o protesto mais polarizador.

Muitos diriam que ele saiu perdendo. Um FDP desobediente e antiamericano, certo? A ironia é que Trump, ao repreender o novo grupo de atletas da NFL que protestaram, acaba de dar mais atenção e credibilidade ao protesto de Kaepernick.

A história já era explosiva, mas agora ficou ainda mais. Não houve como evitar o assunto no fim de semana. Agora, que bom seria se mais atenção e credibilidade fossem dados à causa sobre a qual Kaepernick se manifestou –combater a injustiça.

"Existe essa narrativa segundo a qual esses protestos são contrários à nossa bandeira e a nossas forças armadas", falou o jogador Kurt Warner, do Hall da Fama, no domingo na NFL Network.

"Eu não os enxergo assim. Para mim, eles complementam os ideais da bandeira, das forças armadas e daquilo que elas defendem. Não ouvi um único jogador que não expressasse gratidão às nossas forças armadas. A questão aqui não é essa: é nos posicionarmos em defesa dos ideais da bandeira."

No domingo, a resposta foi uma defesa dos ideais da NFL. Antes dos gestos que fizeram durante o hino nacional, os times divulgaram comunicados criticando o discurso de Trump, todos usando palavras cuidadosamente pensadas para falar de um tema comum: que os esportes unem as pessoas.

A união deu o tom no domingo –não um discurso sentimentaloide e supersimplificado sobre união, não uma tentativa de obrigar todo o mundo a obedecer e parecer unificado, mas uma união real.

Os estádios não estavam lotados de jogadores ou torcedores que pensavam igual. Os jogadores não ficaram de pé pelas mesmas razões; eles não se ajoelharam pelas mesmas razões. Os torcedores não vaiaram pelas mesmas razões; não manifestaram apoio pelas mesmas razões.

Mas dezenas de milhares de pessoas se reuniram em vários lugares e expressaram o que queriam expressar. E a hostilidade teve pouca importância, comparada à sensação boa de simplesmente ser ouvidos.

Então as partidas começaram, e as pessoas torceram por seus times favoritos, e uma refeição esportiva deliciosa não foi estragada pela obrigação de comer as verduras em primeiro lugar. A NFL derrotou Trump. Redondamente.

Para distorcer o clichê esportivo do momento, quem sabe Trump não devesse se limitar a tentar comandar um país que mal está com sua própria cara no momento. O mundo esportivo vai continuar a fazer o que faz melhor: abraçar as diferenças e administrar conflitos no campo do esporte.

Tradução de CLARA ALLAIN


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