Folha de S. Paulo


Memória de 1985 molda reação de mexicanos a terremoto

Ele olhava contrariado as paredes tortas de seu prédio. Uma hora antes, Elías Téllez preferiu ficar em casa e ignorar mais um alarme sísmico que despertou os moradores da Cidade do México. Foi só um susto na ressaca do tremor de 7,1 graus de magnitude que matou 305 pessoas no país, mais de metade delas na capital, há uma semana.

"Não dá nem um minuto. Para que correr? É o tempo de se vestir e tudo já veio abaixo", dizia o engenheiro de 65 anos, numa rua de Roma, o bairro nobre do centro da metrópole mexicana que foi um dos pontos mais afetados pelo tremor. "Nunca saio. É mais seguro ficar em casa."

Essa calma, ou resignação, tem raiz histórica. Téllez é um dos muitos sobreviventes do terremoto de 19 de setembro de 1985 que ainda moram no mesmo endereço em que foi pego pela catástrofe de três décadas atrás, quando 10 mil pessoas perderam a vida.

"Sempre que há qualquer tremor, a gente fica muito nervoso", dizia Téllez, que esperava um inspetor do governo para vistoriar os estragos em seu apartamento. "O medo é latente, mas minha consciência diz que, se em 1985 não aconteceu nada, agora também não vai."

Nada, no caso, é relativo. Ele não se esquece de sentir que a cidade "navegava sobre ondas e depois foi espancada com marteladas" no abalo anterior. E dá detalhes de como ruíram os prédios na mesma rua Tonalá e as estratégias de recuperação –as torres mais altas foram cortadas, eliminando os andares de cima e preservando só o térreo.

Sua vizinha, Yolanda Vargas, também tem lembranças vívidas de 1985. "Juntaram todos os cadáveres do bairro na esquina, onde fica o banco", conta. "O cheiro era fortíssimo. Foi uma tragédia."

Mas isso não impediu que ela tivesse seus seis filhos ali. "Se um terremoto for me pegar, vai me pegar em qualquer lugar", ela diz. "Sei que o prédio está bem danificado, mas minha cabecinha diz que a construção é pesada demais para se mexer depois de tudo que aguentou. Vivemos com medo, correndo riscos, mas não temos para onde ir. É uma psicose tremenda".

Esse estado mental, ao longo dos anos, também molda o que os mexicanos chamam de cultura de terremoto, um conhecimento de movimentos de placas tectônicas que num país onde o chão treme o tempo todo é menos coisa de nerds da geologia e mais questão de sobrevivência.

"Em 1985, foi um terremoto mesmo seguido de uma réplica forte", diz sua filha, Leticia, na época com 26 anos. "Mas esse último mudou nossas vidas, porque é um tremor atrás de tremor atrás de tremor. Isso faz com que a gente se pergunte o tempo todo o que está acontecendo."

Sentada diante da papelaria que abriu na praça Rio de Janeiro ali perto, bem antes do terremoto de 32 anos atrás, María de Álvarez y Haces explica a diferença entre o tremor de antes e o de agora fazendo gestos com as mãos.

Um terremoto oscilatório, ela diz roçando as palmas na horizontal, significa que a terra se mexe debaixo dos pés como uma esteira de academia. A modalidade trepidante, a do último tremor, é quando tudo chacoalha para cima e para baixo, e suas mãos sobem e descem frenéticas.

"Ele começou oscilatório, o chão levantava e afundava, e depois ficou trepidante", ela diz, sobre o abalo de 1985. "O prédio ao lado cuspia todas as suas janelas, as louças, as cadeiras, as xícaras, tudo que você imaginar."

Esse mesmo prédio ficou dois anos desabitado. Foi restaurado depois, mas sofreu fortes abalos na semana passada, ameaçando desabar, para o desespero de María Teresa López, freira que dirige um colégio ao lado.

Mostrando o relatório da Defesa Civil atestando que a escola estava em perfeitas condições depois do terremoto mais recente, López lembrou que, em 1985, a situação foi "mais caótica".

"Não havia comunicação, a torre de televisão caiu e nem o presidente podia falar", lembra. "Agora tem a internet, e as pessoas são resgatadas chamando pelo celular."

Essa mesma tecnologia, no entanto, também torna tudo mais histérico. "Vemos tudo em tempo real", dizia Germán Ramírez, que viveu os dois terremotos, a uma quadra dali. "Agora as dimensões são bem mais exageradas."

Essa elasticidade dos fatos em tempos de "fake news", ou "coisas que viram lendas", nas palavras de Ramírez, explica o furor em torno de Frida Sofía, menina que nunca existiu, mas que estaria presa nos escombros de escola.

Lendas ou não, as histórias fantásticas dos terremotos que não saem da cabeça dos mexicanos acabam evaporando com o tempo. "É uma triste realidade, porque quando as pessoas esquecem vão afrouxando as regras de construção", diz López, a freira. "A memória aqui é frágil".

Editoria de Arte/Folhapress

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