Folha de S. Paulo


Campo em Gana oferece 'purificação para bruxas'

Eduardo Asta/Folhapress
Moradoras do campo de Gambaga, que acolhe mulheres acusadas de bruxaria em Gana
Moradoras do campo de Gambaga, que acolhe mulheres acusadas de bruxaria em Gana

Não é preciso muito para uma mulher ser considerada bruxa em Gana.

Ela pode ser acusada de ter poderes malignos caso um filho morra ou apresente indícios de doenças tão corriqueiras no país quanto cólera, malária e sarampo. Quando a terra da família não dá uma boa colheita, a culpa talvez recaia sobre ela. E se um homem casado demonstra interesse, quem disse que ela não lançou um feitiço contra ele?

Crenças antigas persistem e fazem vítimas dia após dia no país da África Ocidental, sobretudo na região norte, menos desenvolvida.

É na cidade de Gambaga –a 150 quilômetros de Tamale, a capital do norte de Gana– que muitas dessas mulheres buscam proteção, em um acampamento com mais de cem anos de existência.

"Ao invés de acampamento, preferimos chamá-lo de lar. Porque aqui elas se sentem acolhidas", explica Jacob Wandusim, ministro da Igreja Presbiteriana de Gana. A entidade é responsável pelo Gambaga Outcast Home Project (GOHP), que desde 1994 promove ações em prol do bem-estar socioeconômico das mulheres ali instaladas.

O refúgio de Gambaga é o mais antigo e o maior dos quatro ainda em atividade na região, o que explica o intenso fluxo de mulheres. Hoje, há 79 vivendo ali, mas nos anos 80 elas já somaram 250.

Quando acusadas de bruxaria, muitas sofrem agressões físicas dos familiares e são expulsas de casa só com a roupa do corpo. O resto de seus pertences são queimados. De mãos vazias e machucadas, elas tentam chegar ao acampamento mais próximo atrás de purificação e refúgio.

BRIGA COM A CUNHADA

Dez anos atrás, Mawa, uma septuagenária, caminhou mais de 20 quilômetros de seu antigo vilarejo até Gambaga. Ela havia sido considerada bruxa após uma discussão com sua cunhada, que, poucos dias depois, morreu.

Para permanecer no acampamento, Mawa teve de pedir permissão ao chefe de Gambaga. É assim até hoje. Mesmo quem deseja apenas visitar o lugar deve ter a autorização do chefe (uma contribuição financeira também é esperada), líder religioso presente na maioria das cidades e vilarejos do norte de Gana.

Depois de aceitas, as mulheres são submetidas a um ritual de purificação comandado pelo Gambagarana, outro líder local com poder hereditário de exorcizar espíritos malignos. Detalhes do processo, que envolve ervas e o sacrifício de um frango, são mantidos em segredo.

"Muitas chegam aqui acreditando serem bruxas, pois é algo que faz parte da mitologia ganense. Elas querem ser purificadas para poder voltar para casa", diz Wandusim.

A reintegração às famílias e à comunidade é um dos trabalhos do GOHP. Membros do projeto vão até os vilarejos das vítimas para convencer parentes e os líderes locais de sua purificação.

Quando as mulheres têm doenças psiquiátricas, eles pedem a ajuda de médicos.

"Algumas sofrem de demência ou Alzheimer. Explicamos que seu comportamento não tem a ver com magia negra, mas com saúde."

Eduardo Asta/Folhapress
Mulheres acusadas de
Mulheres acusadas de "bruxaria" vivem em pequenas aldeias circulares, construção comum no norte de Gana

DOCUMENTÁRIO

A readaptação no lar que acolhe mulheres acusadas de bruxaria em Gambaga, norte de Gana, é o mote de "Witches of Gambaga" (2010), filme da diretora ganense Yaba Badoe ganhador do prêmio de melhor documentário no Black International Film Festival, do Reino Unido.

"Soube que deveria contar a história dessas mulheres quando visitei o acampamento pela primeira vez, em 1995. As pessoas precisam saber dos regimes de gênero que ainda moldam a vida na África. Só assim podemos educar e acabar com crenças que demonizam as mulheres", diz.

O documentário também retrata casos em que as vítimas não são aceitas de volta pela família. Em outros, elas mesmas não querem voltar, sobretudo se foram muito maltratadas ou humilhadas.

Zenabu preferiu recomeçar a vida no acampamento desde que ali chegou, em 2008.

"Aqui é minha casa. Quero morrer aqui", diz ela, que recebe periodicamente a visita de seu filho mais novo, de 14 anos. Ela é a atual líder do refúgio –a única que pode falar diretamente com o chefe e organiza as tarefas entre as companheiras.

As mulheres se viram para sobreviver. As mais jovens plantam legumes e ajudam na colheita de fazendas da região. Em troca, recebem uma porção de milho, amendoim e outros grãos. As mais velhas aprendem com o pessoal do GOHP (Gambaga Outcast Home Project) técnicas de artesanato e vendem os produtos a visitantes e à comunidade.

Além de sua subsistência, elas devem dar uma contribuição à comunidade, com alimentos, dinheiro ou trabalho. Tal obrigação chamou a atenção de organizações de direitos humanos, que chamam o acampamento de prisão ainda que não haja grades ou controle de acesso.

A limpeza do acampamento também fica a cargo delas. A estrutura do lugar segue o perfil arquitetônico das vilas do norte: casinhas de barro com telhado de palha funcionam como quarto e cozinha das moradoras, que compartilham um pátio central.

Em 2016, com doações de entidades internacionais, o local ganhou painéis solares, caixas d'água e banheiros. Mas não há esgoto tratado.

O GOHP também promove visitas aos vilarejos vizinhos na tentativa de desmistificar a condição de bruxas das mulheres. Algumas ações semelhantes são coordenadas por instituições educacionais. A Universidade de Legon, na capital, Acra, exibe a todos os novos alunos o documentário "Witches of Gambaga".

"O número de mulheres que chegam ao acampamento tem diminuído. Mas ainda não tanto quanto gostaríamos", diz o ministro da Igreja Presbiteriana de Gana Jacob Wandusim.


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