Folha de S. Paulo


América Latina precisa sair da ideia mágica de redenção, diz Loris Zanatta

Xavier Martín/Folhapress
O historiador italiano Loris Zanatta em Buenos Aires
O historiador italiano Loris Zanatta em Buenos Aires

Para o historiador italiano Loris Zanatta, 55, a chave para entender os populismos na América Latina está na dificuldade histórica de separação entre religião e Estado e no fracasso da tentativa de transmitir às massas os valores iluministas. Neste contexto, quando surgiram líderes que propuseram reunir novamente as duas dimensões, eles tiveram sucesso, foi o caso de Perón, na Argentina, e de Hugo Chávez, na Venezuela, entre outros.

Zanatta, que é professor de história da América Latina na Universidade de Bolonha e passa parte do ano na Europa, e parte na Argentina, concedeu entrevista à Folha em seu escritório, em Buenos Aires. Leia trechos da entrevista.

Folha - Em seu livro "La Larga Agonía de la Nación Católica" (ed. Sudamericana, importado), o sr. relaciona o fundo religioso da formação da Argentina e dos Estados latino-americanos com o populismo. Como isso se verifica nos dias de hoje?

Loris Zanatta - O fenômeno do mito da nação católica está difundido em toda a América Latina por razões históricas, como a colonização, a imigração e a necessidade de formar uma identidade dos novos países.
Há uma dificuldade dos que vêm da tradição latina e católica de aceitar a Ilustração, porque esta surge como algo vindo de fora, e gera reações.

No liberalismo e na tradição ilustrada, o povo soberano é o povo da Constituição. Este povo é dotado de direitos e se concebe um pacto racional e plural entre os atores.

Já o mito da nação católica é populista, pois nele se pensa no povo como algo que está acima do pacto político-racional. Nele, o povo é algo que identifica um espírito, uma essência, uma identidade da nação, que está acima Constituição.

Mas os Estados latino-americanos nasceram com Constituições.

Sim. Mas num contexto em que a Constituição podia ser aceita desde que, acima dela, predominasse a identidade nacional fundada no catolicismo. Aqui, o liberalismo sempre esteve submetido a uma ideia romântica de povo.

Isso nunca mudou?

De certo modo, com o retorno à democracia. Os anos 80 significaram uma convergência dos países latino-americanos com os europeus. Houve maior aceitação do modelo liberal de democracia, com separação de poderes, igualdade, liberdades individuais e economia de mercado. Mas isso não significou a eliminação da ideia de que existe um povo mítico acima da Constituição. Isso pode ser verificado nos recentes movimentos populistas.

Como vê o caso da Venezuela?

A Venezuela é uma herdeira explícita da tradição populista. Essa tradição veio de antes, com o castrismo, e antes dele, com o peronismo. São sistemas que formam uma cadeia. No chavismo, existe a ideia de um povo mítico que está por cima da Constituição.

Quando Maduro perdeu as eleições legislativas em 2015, não foi uma derrota qualquer. Afinal, se você fala em nome do povo, e só consegue 30% dos votos, então você é um populista órfão de povo.

Mas então, ele afirma: "não importa, eu seguirei governando com o povo". O que ele quer dizer com isso? Que o povo da Constituição, o da Ilustração, o do pacto democrático não importa. O seu povo é o povo mítico do relato da nação, e portanto o único legítimo. E muitos creem nisso, e é por isso que o regime perdura.

Trata-se de algo muito difícil de as pessoas entenderem. Assim como o peronismo e o castrismo, o chavismo tem uma visão da democracia que não é pluralista, porque esses movimentos se apresentam como se estivessem acima da democracia.

É onde entra o impulso religioso?

Sim, nesse tipo de sistema, é uma visão de origem religiosa que move as pessoas. Evoca-se o povo como se fosse o povo bíblico que caminha para a redenção. E há um outro povo, que é o inimigo, que representa o pecado. São os chamados "oligarcas".

Então, mesmo que os "oligarcas" ganhem uma eleição e sejam maioria ainda que seja um contrassenso uma oligarquia virar maioria, para os líderes populistas isso não importa. Porque são eles os que encarnam o povo mítico, cuja maioria não se conta nas urnas, e sim na adesão à ideia de essência da nação.

Mas nos movimentos populistas recentes, a Constituição foi um recurso ao qual muitos apelaram. Rafael Correa, Hugo Chávez, Evo Morales, e agora Maduro. Todos reescreveram a Constituição de seus países. Por que, se na verdade não se importam com as leis?

No século 19, exceto o Brasil, que tinha mais estabilidade política por conta da monarquia, os países hispânicos viveram uma enorme instabilidade. Então, os caudilhos tomavam o poder com as armas e se legitimavam através de uma Constituição.

Ou seja, há diferentes formas de conceber uma Carta. Ela pode ser um pacto entre todos e que fixa os limites e as regras do jogo, está é a Constituição liberal.

Mas pode ser uma outra coisa. E no caso desses fenômenos populistas, tem sido sempre essa outra coisa. Tem sido um documento que confirma que o passado de pecado acabou e que a redenção começou.

A Constituição dos populistas é uma nova Bíblia. Esses movimentos nunca se apresentam como um governo entre outros governos, e sim como refundadores e redentores. Têm a necessidade de dizer :"aqui começa uma nova história, uma história de salvação". E é por essa razão que precisam escrever a sua Constituição, que não é um pacto para todos os atores políticos, e sim a Bíblia de uma nova ordem.

Há uma diferença entre a Constituição de Chávez (1999) e essa que Maduro quer fazer agora?

Sim. Chávez fez sua Constituição baseado no que acabo de explicar. Já Maduro, não. Sua estratégia é outra. O governo perdeu as eleições legislativas em 2015. Então, tinha que mudar as regras. A nova Constituição que sairá dessa Assembleia terá a mesma função que as da época do caudilhismo do século 19. Será o instrumento para legitimar uma nova ordem, um novo momento da revolução.

E a revolução, no mundo hispânico, para usar um conceito da esquerda do qual eu não gosto, é "reacionária", porque tem um significado de refundação baseado num mito de origem.

Em seu livro, quando o sr. trata da Argentina nos anos 1970 e da luta das guerrilhas e do peronismo contra o regime militar, o sr. defende que a democracia jamais esteve na agenda de nenhum dos lados. Por quê?

De fato. O Estado de Direito e a democracia não importavam para nenhum dos lados da contenda. Não havia um projeto de sociedade plural, nem dos peronistas, e muito menos dos generais.

Aqui houve uma guerra de religião de fato. Foi uma luta entre dois lados que reivindicavam carregar a identidade mítica baseada no catolicismo.

Só que as Forças Armadas, o peronismo de direita e o peronismo de esquerda tinham ideias diferentes sobre o que era essa identidade.

Como cada um achava que era ele quem identificava a nação, isso levou a que o outro fosse identificado como a "não-nação". Virou uma luta do Bem contra o Mal. E as pessoas se mataram por isso.

Se a visão religiosa do Estado sempre foi tão importante, por que os países latino-americanos tiveram a preocupação de incluir o laicismo entre suas leis?

Porque enquanto essas novas sociedades foram elitistas e liberais, o pensamento laico era o recurso para se desvincular da tradição ibérica, que era vista como o atraso, o obscurantismo e a inimizade ao progresso.

O problema se deu quando, com a modernização, veio o momento da inclusão das massas. E o projeto de transmitir para as massas os conceitos liberais e democráticos, que incluía as ideias laicas, fracassou.

Nesse contexto, entram os populismos?

O ingresso das massas na vida política é essencial para entender os populismos. O que tinham em comum o salazarismo, o franquismo, o fascismo, o varguismo do Estado Novo, o PRI mexicano e o peronismo? O "ar de família". Foram todos fenômenos que compartilharam um desejo de voltar a reunir a dimensão política e a dimensão religiosa. Ou seja, fundaram religiões políticas. Todos falavam em nome da essência da nação, e nunca se apresentaram como partidos entre outros partidos. Creem que encarnam uma visão religiosa da comunidade nacional.

O colonialismo teve influência nesses fenômenos também?

Sim. Todos os países latino-americanos foram colônias. E as colônias estavam baseadas numa concepção orgânica, nunca pluralista. Era uma concepção onde a unidade política e a unidade religiosa estavam vinculadas. Uma sociedade hierárquica, desde a elite até os escravos, onde cada um tinha seu lugar, seus direitos e seus deveres.

Por isso, para a camada mais popular da sociedade, os valores liberais e democráticos de laicidade, de pluralismo e de democracia são valores que pertencem a um mundo elitista, longínquo e que se auto-reproduz.

Para as bases, o imaginário religioso, que dava um sentido de pertencimento e de comunidade, era e ainda é mais importante.

Por isso, quando chegaram líderes que se apegaram a esse imaginário religioso, as massas os seguiram. Eles eram os novos redentores. E, de fato, Perón, Castro, e tantos outros depois deles, vieram impregnados de uma ideia de salvação e de redenção moral.

Por isso identificar o "imperialismo" com esses valores longínquos?

Aí é preciso entender o que trouxe a modernização. A industrialização, como todos os fenômenos históricos, desarticulou um mundo antigo e criou um novo mundo, gerando novos conflitos.
Na periferia do mundo, portanto, ficou fácil combater uma força exterior chamando-a de "imperialista" e acusando-a pela fragmentação interna.

Contra a ameaça externa, nós nos apegamos a nossa identidade mítica, que está baseada em um espírito religioso.

Houve exceções na América Latina?

Sim, há países onde as coisas não foram assim. O Chile e o Uruguai. Esses dois países, muito diferentes entre eles –muito laico o Uruguai, muito religioso o Chile–, de uma maneira muito precoce realizaram a separação das duas esferas, a religião e o Estado.

Será uma coincidência que esses dois países são os únicos que não tiveram populismos? Será uma coincidência que são os que melhor consolidaram uma democracia pluralista de tipo liberal? Eu acho que não é casualidade. Creio que a separação da política e da religião que estes dois países alcançaram é a chave de seu êxito.

Num artigo recente, o sr. disse que uma parte da esquerda europeia alimenta um estereótipo da esquerda latino-americana que prejudica a região. Por que?

Na Europa, assim como na América Latina, há uma esquerda social-democrata e uma outra, que chamo de redentiva. Esta é a que está aprisionada a uma ideia da América Latina que tem mais a ver com seus sonhos e com suas frustrações do que com a realidade.

Hoje eu entro numa livraria italiana e não encontro livros sobre a América Latina de hoje, mas sim acho 20 títulos sobre o Che Guevara, com uma visão idealista e ingênua.

Isso faz mal à América Latina porque a região precisa sair do pensamento mágico da redenção. Precisa de uma cultura política, seja de esquerda ou de direita, que seja mais pragmática. Que não fale mais de grandes ideologias, e sim de solucionar problemas concretos.

A esquerda redentiva fala como se tivesse a receita para solucionar a injustiça social e a pobreza. Mas ela não tem.

Basta olhar a Venezuela. Tiveram uma imensa riqueza, e fizeram uma imensa estupidez, pois fizeram o que sempre fazem os populismos. Até onde tiveram dinheiro, gastaram.

No passado, era mais fácil definir o que era uma ditadura na América Latina do que hoje? Nos anos 1970, havia golpes de Estado, tanques nas ruas, generais no poder. Hoje é mais difícil? Fujimori e Maduro, que foram eleitos pelo voto popular, por exemplo, são ditadores?

É verdade que houve um tempo em que era mais fácil identificar. Se votava, era uma democracia. Não se votava, era uma ditadura. Já há algum tempo isso é mais complexo.

A principal distinção que devemos fazer é entre o que é uma democracia e o que não é uma democracia. Dentro do que não é democracia, aí é possível usar várias definições.

Os elementos fundamentais da democracia são o pluralismo, o voto, a separação de poderes, Justiça independente e a competição entre atores distintos. Se já não se dá essa competição, ou se há eleição, mas com o campo de futebol inclinado para um lado, como é hoje na Venezuela, então já não é uma democracia.

E tem de haver Estado de Direito. Se eu padeço de um arbítrio por parte de uma autoridade, numa democracia eu sei que há uma instância à qual posso me dirigir e ter garantias de que estou protegido como cidadão.
Em um sistema não democrático, essa garantia não existe, porque não existe uma separação entre poder Executivo e poder Judicial. Se estou na Venezuela, sou parado pela polícia e essa coloca cocaína entre as minhas coisas e diz que é minha, eu sei que estou perdido e não tenho a quem recorrer.

E como classificar os sistemas não democráticos?

Eles não são todos parecidos. Fujimori foi ditatorial, porque mesmo sendo eleito, houve violação grave de direitos humanos, abusos na forma de combater a guerrilha e se submeteu a Justiça ao Executivo.

Outro instrumento para definir as ditaduras é pelo que dizem que são. Fujimori dizia que o fechamento do Congresso e as medidas de exceção eram para "reorganizar" algo que estava desorganizado. Os generais brasileiros, chilenos e argentinos também diziam que havia desordem, que eles organizariam, e depois se podia voltar à democracia.

Ou seja, a ditadura se apresenta para supostamente reestabelecer a ordem, mas não tem uma ideologia.

A ideologia diferencia a ditadura de um regime totalitarista?

Sim, porque os totalitarismos têm a ideia de redimir, de revolucionar. Eles não pensam que, um dia, terminarão a tarefa e se voltará à ordem democrática.

Na Venezuela há um estado totalitário, porque o chavismo se apresenta como a nova religião, que fundou uma nova ordem. Ou seja, há uma ideologia. O peronismo era ensinado nas escolas argentinas, como o castrismo nas escolas cubanas, enquanto Chávez mudou os símbolos nacionais e recontou a história da Venezuela.

Foram e são totalitarismos.

O sr. criticou o papa por não se posicionar de forma dura com relação à Venezuela por identificar o chavismo como um fenômeno de massas parecido ao peronismo, com o qual ele tem afinidades. Ainda pensa assim?

Sim, creio que a Venezuela causa ao papa um dilema. Bergoglio é orgulhoso em mostrar-se populista. A visão de mundo do papa é a de que os pobres são os que encarnam o povo. Eles concentram todas as virtudes.

Já a classe média, mais vinculada com a cultura da ilustração, está identificada com a laicidade, com o consumismo, com o capitalismo, ou seja, é uma classe que trai o povo e portanto encarna uma "anti-nação".

Enquanto o chavismo funcionou medianamente bem, a simpatia do papa pelos pobres fez com que apoiasse Chávez.

O problema é que agora tudo está vindo abaixo e mostrando que a estrutura de pensamento do papa é precária.

Afinal, como é possível que a Venezuela, anti-capitalista e anti-liberalista, com recursos enormes, fracassou? Por que tantos pobres? Tanta desigualdade? Tanta corrupção?

Então ele sai agora com essa de que é preciso haver diálogo, como se Maduro fosse um interlocutor possível a essa altura, um líder que tem as mãos sujas de sangue. O que há para ser dialogado com Maduro?

A Venezuela nos mostra os limites da visão do mundo do papa. Ou, então, que ele fazendo o jogo de Maduro.

Qual seria esse jogo?

Depois da Constituinte, Maduro chamou as eleições nos Estados, as que havia postergado e que agora adiantou (ocorrem em outubro). Por que? Para pegar a oposição dividida. Por que soltar Leopoldo López? Para ter um líder a mais no páreo, para fragmentar ainda mais seus inimigos e, ao mesmo tempo, mostrar uma boa cara ao mundo.

Então ou o papa tem uma estrutura de pensamento realmente muito limitada, ou está fazendo o jogo de Maduro.


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