Folha de S. Paulo


Tensão entre Coreias trava escavação de palácio, dicionário e comércio

Associação de História Intercoreana/Divulgação
Historiadores sul e norte-coreanos no início da escavação do palácio Manwoldae, em 2007

A tensão que envolve a península Coreana, em curva crescente desde o ano passado, trava projetos de cooperação entre as duas Coreias.

Os contatos com a Coreia do Norte estão suspensos desde fevereiro de 2016, quando o governo da então presidente sul-coreana Park Geun-hye ordenou a paralisação de todos os projetos conjuntos, incluindo o fechamento do complexo industrial de Kaesong. Nele, operários do norte trabalhavam para empresas do sul.

Em 2015, último ano completo de funcionamento, o complexo respondeu por 99,6% dos US$ 2,7 bilhões de comércio entre Seul e Pyongyang. De janeiro a julho de 2017, as trocas entre ambos foram de apenas US$ 730 mil.

Um dos projetos conjuntos, estabelecido em 2007, envolvia a exploração de recursos subterrâneos na Coreia do Norte, que poderia ajudar a demanda do sul por ferro e magnésio —Seul importa 100% do que consome desses dois minérios.

Em contrapartida, o sul enviaria US$ 80 mil em sapatos e produtos têxteis para Pyongyang. Essa parte foi concluída, entre 2007 e 2008.

"Antigamente, a Coreia do Sul só mandava. Esse foi o primeiro projeto em que o norte também ajudava", afirmou à Folha Lee Byeong-do, da Associação de Apoio e Cooperação ao Intercâmbio da Coreia do Sul-Norte.

PALÁCIO

Entre os séculos 10 e 14, o palácio Manwoldae abrigou a família real da dinastia Goryeo, cujo reino unificou a península Coreana e deu origem à palavra Coreia. O palácio foi destruído por inimigos mongóis por volta de 1350 e hoje seus resquícios encontram-se do lado norte-coreano, próximo à cidade de Kaesong.

O projeto de escavação começou em 2007, dois anos após uma assembleia de historiadores das duas Coreias elegê-lo como o patrimônio norte-coreano a ser estudado e restaurado para inscrevê-lo na lista da Unesco —feito atingido em 2013.

Entre as relíquias encontradas estão tipos metálicos usados para imprimir publicações no século 13, 200 anos antes do alemão Johannes Gutenberg usar tipos móveis.

O historiador Ahn Byung-woo, 63, conta que os pesquisadores do sul e do norte se encontravam na escavação durante cerca de dois meses por ano.

Associação de História Intercoreana/Divulgação
Fundações do palácio Manwoldae em Kaesong durante o último ano da escavação, em 2015

Em 2015, esse período chegou a seis meses, e havia o plano de ficar em Manwoldae o ano inteiro em 2016 —algo que não se concretizou devido à suspensão por Seul dos projetos intercoreanos em fevereiro. Segundo Ahn, à época Pyongyang desejava manter a parceria.

Em junho deste ano, o Ministério de Unificação autorizou que o conselho de historiadores contatasse a contraparte norte-coreana, afirma Ahn.

O contato, como todos os outros, se deu via China, onde Pyongyang mantém a Organização da Paz do Povo Coreano. É para essa entidade que os sul-coreanos enviam um e-mail e fazem contato com o norte.

"Não tivemos resposta até agora", diz Ahn, que tinha a expectativa de retomar a escavação nos próximos meses.

DICIONÁRIO

Corria o ano de 1989 quando o poeta e teólogo sul-coreano Moon Ik-hwan (1918-1994) visitou Pyongyang. Recebido pelo então líder do país, Kim Il-sung (1912-1994), ele falou do sonho de criar um dicionário unificado da língua coreana.

O projeto ganhou fôlego quando, em 2005, 11 pesquisadores do sul e dez do norte se reuniram em um comitê para a compilação do dicionário, com 300 mil verbetes: 170 mil ficaram a cargo do sul, 130 mil eram responsabilidade do norte. Até dezembro de 2015, foram realizados 25 encontros, em Seul, Pyongyang, Kaesong e Pequim.

Ao término de cada etapa, um lado revisava o trabalho do outro. Os arquivos de texto foram trocados oito vezes, afirma o diretor sênior de compilação, Han Yongun, 51, que lembra de debates acalorados sobre alguns verbetes.

Guilherme Magalhães/Folhapress
Volumes de dicionário coreano publicado pela Coreia do Norte; projeto de tomo unificado está parado

"Países comunistas costumam definir que língua é uma ferramenta para a sociedade socialista. A Coreia do Sul diz que é uma forma de comunicação", compara.

"Da mesma forma, o sul ia definir socialismo como um sistema em que há uma divisão igualitária do que se produz no trabalho. O norte queria definir como o melhor sistema do mundo."

O pesquisador afirma que a Assembleia Nacional sul-coreana pressiona para a equipe apresentar algum resultado, e Han não descarta que Seul publique a versão digital do que já foi compilado e revisado antes de Pyongyang dar uma resposta.

O projeto está 75% concluído, segundo Han. "O plano era completar o dicionário até 2019, mas acho que isso não vai acontecer."

O jornalista viajou a convite do Ministério da Cultura, Esportes e Turismo da Coreia do Sul


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