Folha de S. Paulo


Análise

Para mulheres alemãs, Merkel é um símbolo, mas não a salvadora

Com apenas nove anos de idade quando a chanceler Angela Merkel foi eleita pela primeira vez, em 2005, Kristin Auf der Masch realmente não pode se lembrar de um tempo em que a Alemanha fosse governada por um homem.

Mas se Auf der Masch, hoje com 21 anos e aprendiz em uma empresa de energia eólica nesta cidade do noroeste, acha difícil imaginar um chanceler homem, também acha impossível imaginar uma chefe mulher.

"Há muitas mulheres no meu nível, e depois há Angela Merkel", disse ela durante um debate recente em sala de aula sobre a eleição de 24 de setembro, quando Merkel deverá ganhar um quarto mandato. "Não há muitas mulheres no meio."

A Alemanha, que tem sido liderada pela mulher mais poderosa do mundo há 12 anos, tem um problema com mulheres.

John Macdougall - 15.nov.2016/AFP
German Chancellor Angela Merkel addresses guests at a meeting of the Confederation of German Employers' Associations (BDA - Bundesvereinigung der Deutsche Arbeitgeberverbaende) in Berlin on November 15, 2016. / AFP PHOTO / John MACDOUGALL
A chanceler alemã Angela Merkel, no poder desde 2005

Durante a campanha eleitoral –e nas anteriores–, Merkel rejeitou o uso da palavra "feminista". Ela raramente, ou nunca, promoveu publicamente o tema do progresso das mulheres –e as mulheres na Alemanha não progrediram muito.

Mesmo na política, onde a chanceler se mostrou um modelo para muitas e prometeu, se for reeleita, nomear um gabinete com equilíbrio de gêneros, o número de mulheres no Parlamento certamente cairá, seja qual for o resultado da votação.

Alice Schwarzer, a mais conhecida feminista do país, coloca desta maneira: "Desde 2005, as meninas podem decidir: quando eu crescer, serei cabeleireira ou chanceler?"

Pergunte a Auf der Masch e às outras 14 aprendizes em sua classe quantas das empresas locais que as treinam –firmas de médio porte que fazem de tudo, de margarina a patinetes– são dirigidas por mulheres. Nenhuma mão se levanta.

Há poucas mulheres chefes de departamento, a maioria delas sem filhos. Mas o grupo de aprendizes consegue lembrar de mais gerentes chamados Thomas do que de gerentes mulheres.

Na verdade, há mais CEOs chamados Thomas (sete) do que CEOs mulheres (três) nas 160 empresas negociadas em Bolsa na Alemanha, comenta a fundação AllBright, que acompanha as mulheres em liderança corporativa. Noventa e três por cento de todos os membros de conselhos executivos dessas companhias são homens. Quase 3 em cada 4 empresas não têm mulheres em suas equipes de executivos.

Obrigadas por lei a publicar uma meta de contratação de mulheres no nível executivo, a maioria escreveu "0%".

"Por causa de Merkel, a imagem da Alemanha no exterior é mais progressista do que é de fato", disse Anne Wizorek, uma escritora feminista que ganhou destaque em 2013 quando liderou uma campanha de hashtag de alta visibilidade contra o sexismo casual.

Algumas coisas, do cuidado de crianças à governança corporativa, realmente mudaram para as mulheres na era Merkel.

Mas o viés contra as mulheres que trabalham continua tão profundo, especialmente as mães que trabalham, que alguns jovens comentaristas hoje mencionam a "questão de gênero" na Alemanha junto com a "questão racial" nos EUA –uma peça da bagagem histórica que nunca foi totalmente abordada, fugaz e onipresente ao mesmo tempo, uma espécie de elefante na sala do país.

As poucas mulheres que chegam ao topo, ou perto dele, falam sobre o constante suplício de ser julgadas.

"Não temos o respeito da sociedade como mulheres trabalhadoras", disse Angelika Huber-Strasser, sócia-diretora da KPMG Alemanha e mãe de três filhos. "Eles nos chamam de mães-corvos", por causa da ave acusada (também injustamente) de empurrar os filhotes para fora do ninho.

Anka Wittenberg, diretora de diversidade e inclusão na SAP, uma companhia de software alemã, já tinha seus três filhos quando terminou um mestrado em economia e enviou pedidos de emprego. Nenhuma empresa alemã a chamou para uma entrevista.

Ela fez carreira em companhias dos EUA, subindo nas fileiras da filial alemã da General Electric antes de ser contratada pela SAP, empresa considerada incomumente progressista por ter duas mulheres entre os oito membros de seu conselho executivo (embora nenhuma delas seja alemã).

"Dificilmente temos modelos femininos para mostrar às jovens que é possível ter uma família e uma profissão", disse Wittenberg. "A Alemanha ainda está muito atrasada."

A supermãe da lenda alemã tem raízes na difícil história do país. Os nazistas davam medalhas às mulheres que tinham vários filhos. Depois veio a divisão da Alemanha: o oeste reviveu a máxima do século 19 de "Kinder, Küche, Kirche" –filhos, cozinha, igreja–, enquanto no leste os comunistas montaram creches gratuitas.

As mães do leste dirigiam guindastes e estudavam física. Até 1977, as mulheres casadas no oeste precisavam da autorização oficial dos maridos para trabalhar. Então, suas pares no leste tinham um ano de licença-maternidade e um horário de trabalho menor quando amamentavam.

Quando o Muro de Berlim caiu, em 1989, o emprego feminino no leste era de quase 90%; no oeste, 55%. Hoje, mais de 70% das mulheres alemãs trabalham, mas só 12% das que têm filhos com menos de 3 anos trabalham em tempo integral.

Talvez não seja coincidência que Merkel não tem filhos e cresceu na Alemanha Oriental.

"Angela Merkel considera normais coisas que muitas mulheres que cresceram na Alemanha Ocidental consideram nada normais", disse Jutta Allmendinger, uma importante socióloga alemã e presidente do Centro de Ciência Social WZB em Berlim.

Merkel não fez da igualdade de gêneros um tema importante. Mas durante seu mandato as coisas evoluíram silenciosamente.

As escolas, que tradicionalmente fechavam na hora do almoço, contando com as mães que não trabalhavam, gradualmente expandiram seus horários. As creches, antes heresia para crianças de menos de 3 anos, foram vastamente disseminadas. Foi adotada uma licença-paternidade remunerada que leva os pais a tirarem pelo menos dois meses.

Mais recentemente, o governo aprovou uma lei que obriga as grandes empresas a substituir os membros que saem de seus conselhos executivos por mulheres, até formarem pelo menos 30%.

"Ela usa o mesmo estilo de política para gêneros que usa em outras coisas: ela não pede uma revolução. Começa uma evolução", disse Annette Widmann-Mauz, chefe da União das Mulheres Democrata-Cristãs.

Mas as mulheres na Alemanha ainda ganham 21% a menos que os homens –a média europeia é 16%–, principalmente porque não sobem na escada profissional. Em algumas áreas, o número de mulheres em cargos de chefia tem recuado.

Entre as empresas negociadas em Bolsa na internacionalmente reverenciada Mittlestand alemã, as companhias de médio porte que são a espinha dorsal da azeitada máquina de exportações do país, menos de 4% dos cargos executivos são ocupados por mulheres.

Até o progresso mais modesto que as mulheres fizeram encontrou feroz reação em alguns setores.

Birgit Kelle, membro do Partido Democrata-Cristão, de Merkel, e autora de um livro recente chamado "Mãe Animal", acusou a chanceler de abandonar os valores conservadores. "Na minha opinião, o que praticamos é quase comunismo", disse ela. "RDA 2.0, é para lá que seguimos", afirmou, referindo-se à antiga Alemanha Oriental, comunista, conhecida como República Democrática Alemã.

"Eu costumava estar na corrente dominante do partido", disse Kelle. "Agora estou sendo empurrada para a borda direita."

Algumas de suas ex-colegas no partido desertaram para a formação de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD). Seu cartaz da eleição mostra mulheres de biquíni, vestidos rodados ou grávidas.

Na escola vocacional em Osnabrück, os aprendizes desejavam mudanças. Os homens disseram que queriam receber a licença-paternidade (pelo menos alguns deles) e várias mulheres, que queriam ter uma carreira de sucesso (pelo menos até terem filhos).

Mas elas não chamavam a si mesmas de feministas. "Isso é radical demais", disse uma jovem.

Sua professora, Monika Stadje, 63, explicou que o termo ainda invoca uma caricatura de "lésbicas em roupas de motociclista que são muito, muito nervosas e não gostam de homens".

Isso ajuda a explicar por que Merkel, sempre cautelosa com a opinião pública, até hoje se recusou a reivindicar o rótulo para si mesma. Mas algumas jovens gostariam que ela o fizesse.

"Por que ela, como uma das mulheres mais poderosas do mundo, não pode de uma vez fazer uma declaração fundamental sobre a igualdade de gêneros?", perguntou Margarete Stokowski, uma colunista da Spiegel online.

"Ela evita o assunto porque sabe que, caso se abrisse, teria de admitir o quanto ainda está errado."

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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