Folha de S. Paulo


Ante inflação e escassez, venezuelanos improvisam itens de higiene pessoal

Yan Boechat/Folhapress
Rusol Santos, 53, usa maisena entre os ingredientes para produzir seu desodorante caseiro
Rusol Santos, 53, usa maisena entre os ingredientes para produzir seu desodorante caseiro

Moradora da periferia de Caracas, Rusol Santos, 53, despejou bicarbonato de sódio com bastante cuidado na vasilha de plástico transparente. Olhou por cima, por baixo, sacudiu o potinho para o pó branco se espalhar e colocou mais um pouco.

Depois, foi a vez do creme para mãos que ganhou dos filhos no Natal de 2014. Por último, uma dose de maisena.

"Antes eu fazia tudo certinho, medindo a quantidade nas colheres de chá. Agora já acostumei, faço no olho mesmo. E nunca erro", diz, enquanto mistura os ingredientes com uma colher.

Foram cinco minutos girando o creme branco até que Rusol anuncia: "Aí está, mais uma semana de desodorante caseiro prontinho, olha como é cheiroso", afirma, oferecendo uma pitada do creme.

Funcionária administrativa de uma empresa de Caracas em que ganha um salário mínimo, de 230 mil bolívares (R$ 41 no câmbio paralelo) incluindo o vale-alimentação, ela começou a fabricar seu próprio desodorante há pouco menos de um ano.

Foi quando a crise de abastecimento de produtos básicos que atinge a Venezuela estava em seu pior momento. "Era isso ou gastar metade do salário comprando um desodorante no mercado negro."

Ela afirma que agora é possível encontrar desodorantes de marcas desconhecidas, mas com preços altos. Rusol diz ter gastado 8.000 bolívares em um deles para a filha, Yubesmi Aguilar, 28, que sofre alergias com o produto fabricado em casa pela mãe.

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Yubesmi Aguilar, 28, observa a mãe, Rusol Santos, 53, fazer desodorante; a jovem é alérgica ao produto
Yubesmi Aguilar, 28, observa a mãe, Rusol Santos, 53, fazer desodorante; a jovem é alérgica ao produto

As duas agora têm tentado fazer pastas de dente em casa, seguindo uma receita que encontraram na internet, mas o resultado tem deixado a desejar. Ainda não conseguiram dar consistência suficiente à pasta para que ela se mantenha inerte na escova.

Experimentos domésticos como os de Rusol e Yubesmi têm se tornado uma constante nos lares venezuelanos.

Vítimas, primeiro, de uma profunda crise de abastecimento e, depois, de uma inflação que já chega a 300% em 2017, 50% da população venezuelana, que recebe o salário mínimo, tem criado diversas alternativas para manter os hábitos de higiene como eram antes da crise.

"Houve uma redução profunda tanto na produção interna quanto na importação de produtos básicos simplesmente porque o país não consegue dólares suficientes para trazer de fora o que precisa", diz o economista Efraín Velázquez, do Conselho de Economia da Venezuela.

"Além disso, a política de controle de preços fez com que os produtos mais simples sumissem das prateleiras, dando lugar às opções importadas, que são caríssimas para o consumidor comum."

Hoje os venezuelanos estão produzindo de tudo em casa: sabonetes, xampus, desodorante, pasta de dente e até produtos que estavam fora de moda há muito tempo.

Na internet, por exemplo, é possível encontrar à venda absorventes íntimos de pano que podem ser lavados e usados diversas vezes. O uso de fraldas de tecido também retornou em muitas casas.

Todos esse produtos são encontrados em sua forma industrial nas lojas, mas a preços inviáveis para a maioria da população. Um pacote de 47 fraldas de fabricação chinesa, por exemplo, custa 200 mil bolívares, quase o valor do salário mínimo.

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A designer gráfica Ana María Lora, 45, pediu demissão para fabricar sabonetes caseiros em Caracas
A designer gráfica Ana María Lora, 45, pediu demissão para fabricar sabonetes caseiros em Caracas

NOVA CARREIRA

"Houve um momento em que eu me vi sem dinheiro para comprar coisas tão simples quanto um tubo de pasta de dente, o que eu ganhava só me permitia comer, e mal", conta Ana María Lora, 45.

Em meados do ano passado Lora abandonou a carreira de 20 anos como ilustradora e designer gráfica para fabricar sabonetes caseiros. Pediu demissão e montou uma fabriqueta em casa, onde hoje produz cerca de 500 barras de sabonetes por mês.

"A demanda era tão grande que melhorei minha qualidade de vida de maneira incrível apenas fazendo isso", conta ela, que pensa agora em expandir o negócio. "Vendo meus sabonetes a quase o mesmo preço que uns chineses de qualidade bem duvidosa que estão chegando".

César Pinto, 39, trabalha com tecnologia há mais de dez anos, mas agora também quer entrar nesse mercado. Dono de pequenas lojas de celulares e acessórios, passou a oferecer produtos sem relação com seu negócio.

Primeiro foram as barras de chocolate, depois os potes de Nutella e, por último, são os tubos de pasta de dente que dividem espaço com telefones de última geração.

"A procura é tão grande que eu estou transformando uma das minhas lojas para só vender comida e produtos de higiene importados."

Em sua loja de Chacao, bairro nobre de Caracas, um tubo de 250 ml de pasta de dente importada custava 50 mil bolívares na semana passada. O valor assusta compradores. "Mas sempre há quem esteja desesperado e tenha dinheiro. Pasta de dente não estraga e o preço sobe com o dólar."

Yan Boechat/Folhapress
Comerciante de eletrônicos, César Pinto, 39, passou a vender chocolates, Nutella e pasta de dentes
Comerciante de eletrônicos, César Pinto, 39, passou a vender chocolates, Nutella e pasta de dentes

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