Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Sapatos de salto de Melania Trump não são simples calçados

Doug Mills - 29.ago.2017/The New York Times
Melania Trump embarca em avião em Washington
Melania Trump embarca em avião em Washington

Quando um sapato não é um sapato?

Quando estamos falando de um par de sapatos com saltos-agulha altíssimos usados pela primeira dama dos Estados Unidos em uma visita a um lugar onde aconteceu um desastre natural. Nesse caso, o sapato se torna um símbolo daquilo que muitos veem como distância entre o governo Trump e a realidade; mais um exemplo da maneira pela qual o presidente e sua família continuam a definir o que é apropriado de sua maneira; e uma desculpa para impropérios facciosos.

Ou foi isso que se tornou aparente na manhã da terça-feira (29) quando o presidente Donald Trump e sua mulher partiram da Casa Branca para uma viagem ao Texas, onde o presidente seria informado sobre a devastação causada pelo furacão Harvey, e Melania Trump apareceu no gramado da residência presidencial usando calças justas, óculos escuros, uma jaqueta verde oliva –e seus sapatos salto-agulha, que se tornaram marca registrada. Basicamente o mesmo tipo de sapato que ela vinha usando muito antes de começar a participar dos eventos de campanha do marido.

Ainda que, no momento do pouso do avião presidencial, Melania Trump ostentasse aparência muito mais sensata, calçando tênis brancos, vestindo uma camisa branca, e usando um rabo de cavalo por sob um boné preto com a sigla FLOTUS [acrônimo em inglês para "primeira dama dos Estados Unidos"], o tempo de duração da viagem bastou para que os sapatos com os quais ela apareceu antes do embarque deixassem de ser simples calçados e se tornassem causa de críticas venenosas, graças à modalidade de alquimia que caracteriza a mídia social.

Em resposta a essa reação negativa, Stephanie Grisham, a diretora de comunicações da primeira-dama, divulgou o seguinte comunicado, via e-mail: "É triste que tenhamos um desastre natural ainda em curso no Texas e as pessoas estejam preocupadas com os sapatos dela".

É uma reclamação válida, até certo ponto. Mas descartar tudo isso como barulho demais por um simples sapato, ou como símbolo da mesquinhez de nosso eleitorado dividido, é ignorar a realidade da conversação atual em torno do presidente –é fingir não perceber o quanto todos nos tornamos sensíveis às suas reações imprevisíveis a acontecimentos importantes, e negar o poder de um detalhe revelador para causar aplauso, condenação ou erros de interpretação.

É precisamente a natureza superficial das roupas, e o fato de que vestimentas sejam algo imediatamente acessível para todos, que as torna um sucedâneo automático para emoções e questões mais nuançadas e complicadas.

Os saltos altos de Melania Trump - que pareciam ser um modelo clássico de Manolo Blahnik - remetem a determinados clichês de feminilidade: decorativos, nada práticos, caros, elitistas (adjetivos muito frequentemente associados à marca "Trump").

Que eles também sejam parte da identidade que a primeira dama levou a Washington –o conforto que ela exibe ao caminhar com o tipo de sapatos que leva outras mulheres, calçadas em modelos muito mais sólidos, a fazer uma careta de dor e contrair os dedos dos pés sentindo dores imaginárias é parte de sua imagem e narrativa desde o começo– não cancela o fato de que os sapatos que ela prefere vieram a representar seu distanciamento das pessoas comuns, por bem ou por mal. As mulheres da capital norte-americana costumam usar sapatos altos mais sensatos do que os modelos ostentados pela primeira dama.

E Melania Trump compreende o fato, o que explica por que ela vestiu uma fantasia (uso o termo deliberadamente) mais apropriada, para sua chegada a Corpus Christi, Texas. O problema é que, em um ambiente tão conflituoso quanto o atual, a primeira dama está sempre no palco. Até mesmo o embarque em um avião se torna um momento quase oficial no qual todas as mensagens –verbais ou pressupostas– são exploradas em busca de significados.

Melania Trump certamente está ciente disso, em alguma medida, e aceitou o fato como exigência de seu posto: de que outra forma explicar o casaco e véu de renda negra da grife Dolce e Gabbana que ela usou em uma visita ao papa durante a primeira viagem presidencial ao exterior, ou o clássico tailleur vermelho da grife Dior que ela escolheu para sua chegada à França no Dia da Bastilha? Ou o fato de que, ao receber Akie Abe, a mulher do primeiro-ministro japonês, na visita dele a Mar-a-Lago, Melania tenha optado por sandálias de salto baixo na excursão que as duas fizeram ao Museu e Jardim Japonês Morikami (na Flórida, é melhor agir como os locais).

O ponto, ou a ponta, do caso dos saltos-agulha é que é preciso aplicar esse tipo de análise proativa do modo mais coerente em todas as ocasiões públicas (e, se você vive na Casa Branca, isso quer dizer todas as ocasiões).

Para o trabalho de Melania Trump, como para o de seu marido, os detalhes importam. Assim, é melhor pisar com cuidado.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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