Folha de S. Paulo


Vale do Silício intensifica guerra à supremacia branca

O Vale do Silício intensificou de modo significativo sua guerra contra a supremacia branca nesta semana, impedindo que grupos de ódio angariem dinheiro online, retirando-os de máquinas de busca na internet e evitando que alguns sites os registrem.

As novas medidas vão além de censurar reportagens ou postagens individuais. Empresas de tecnologia como Google, GoDaddy e PayPal estão revertendo sua abordagem de não intervenção no conteúdo apoiado por seus serviços e tornando muito mais difícil para as organizações da "direita alternativa" alcançarem o grande público.

Mas essas medidas também aumentam as preocupações de que as companhias tecnológicas estejam se tornando árbitros da livre expressão nos EUA. Em reação, os tecnólogos de direita estão construindo serviços digitais paralelos que atendem ao seu próprio movimento.

Gab.ai, uma rede social que promove a livre expressão, foi fundada em agosto de 2016 por engenheiros do Vale do Silício alienados pelo liberalismo da região.

Outros conservadores fundaram a Infogalactic, uma Wikipedia da direita alternativa, assim como as ferramentas de financiamento coletivo Hatreon e WeSearchr. A última foi usada para angariar dinheiro para James Damore, um engenheiro branco que foi demitido depois de criticar a política de diversidade do Google.

"Se for preciso ter duas versões da internet, que seja", tuitou a Gab.ai na manhã de quarta-feira (16). O porta-voz da empresa, Utsav Sanduja, advertiu mais tarde sobre uma "revolta" no Vale do Silício contra as companhias tecnológicas que tentam controlar o debate nacional.

"Haverá outro tipo de internet dirigido por pessoas politicamente incorretas, populistas e conservadoras", disse Sanduja.

Alguns adeptos da direita alternativa –uma coalizão frouxa de neonazistas, supremacistas brancos e adversários do feminismo– disseram em entrevistas que vão pressionar para que o governo federal regulamente o Facebook e o Google. A posição era inesperada para um movimento que desconfia da interferência do governo.

"Os idiotas no movimento conservador dizem que só é censura se o governo o fizer", disse Richard Spencer, um influente nacionalista branco. "O YouTube, o Twitter e o Facebook têm mais poder que o governo. Se você não pode hospedar um site ou tuíte, você efetivamente não tem direito à livre expressão."

Ele acrescentou: "As redes sociais precisam ser regulamentadas do mesmo modo que as redes de televisão e rádio. Acredito que uma pessoa tem o direito a um perfil no Google, um perfil no Twitter, uma pesquisa acurada (...) Deveríamos começar a pensar nessas coisas como empresas de utilidade pública, e não companhias privadas".

A censura ao discurso de ódio pelas empresas passa em uma inspeção constitucional, segundo especialistas na Primeira Emenda. Mas eles disseram que há um lado negativo em confiar esse papel às empresas.

As firmas do Vale do Silício podem estar despreparadas para administrar um papel social tão grande, acrescentaram. As companhias têm uma experiência limitada em lidar com esses problemas. Elas têm de responder aos acionistas e mostrar crescimento de usuários ou de lucros. Opinar sobre questões de livre expressão apresenta o risco de alienar grandes grupos de clientes em todo o espectro político.

Essas plataformas também são tão enormes –o Facebook, por exemplo, conta com um terço da população mundial em sua base de usuários mensais; a GoDaddy hospeda e registra 71 milhões de sites da web– que talvez seja realmente impossível elas aplicarem suas políticas de forma coerente.

Mas as empresas tecnológicas estão seguindo em frente. Na quarta-feira (16), o Facebook disse que cancelou a página do nacionalista branco Christopher Cantwell, que esteve ligado à manifestação em Charlottesville. A companhia fechou outras oito páginas nos últimos dias, citando violações a suas políticas contra o discurso de ódio. O Twitter suspendeu várias contas de extremistas, incluindo @Millennial_Matt, uma personalidade da rede social obcecada pelos nazistas.

Na segunda-feira (14), o GoDaddy cancelou o Daily Stormer, um site neonazista proeminente, depois que seu fundador comemorou a morte de uma mulher no protesto em Charlottesville, na Virgínia. O Daily Stormer então transferiu seu registro para o Google, que também cortou o site. O site recuou para a "web das sombras", o que o torna inacessível à maioria dos usuários.

No final da terça-feira (15), o PayPal disse que impediria cerca de 35 usuários de aceitar doações em sua plataforma de pagamentos online, depois de revelações de que a companhia teve um papel chave em levantar dinheiro para a manifestação dos supremacistas brancos.

Em uma extensa postagem no blog, o PayPal expôs sua antiga política de não permitir que seu serviço seja usado para aceitar pagamentos ou donativos para organizações que defendem opiniões racistas. O processador de pagamentos destacou a KKK, grupos supremacistas brancos e grupos nazistas –os quais participaram da organização da manifestação no fim de semana.

O Centro Sulino de Direito da Pobreza, uma organização sem fins lucrativos de esquerda e antiódio, disse que até agora o PayPal havia ignorado suas queixas de que estava processando doações e pagamentos para dezenas de grupos supremacistas brancos e racistas. O centro disse que o PayPal também permitiu que pelo menos oito grupos e indivíduos manifestassem abertamente opiniões racistas para angariar um dinheiro que foi vital para o evento em Charlottesville.

"Há muito tempo o PayPal tem sido essencialmente o sistema bancário do nacionalismo branco", disse Keegan Hankes, analista do Centro de Direito, a "The Washington Post". "É uma vergonha que tenha sido preciso Charlottesville para que eles levassem isso a sério."

Dado Ruvic/Reuters
FILE PHOTO: People are silhouetted as they pose with laptops in front of a screen projected with a Google logo, in this picture illustration taken in Zenica October 29, 2014. REUTERS/Dado Ruvic/File Photo ORG XMIT: TOR115
Demissão de funcionário do Google por criticar política de diversidade da empresa movimentou direita

O PayPal concordou em remover pelo menos 34 organizações, incluindo o Instituto Nacional de Políticas, de Richard Spencer, duas empresas que vendem acessórios de armas explicitamente para matar muçulmanos, assim como todas as contas associadas a Jason Kessler, o blogueiro nacionalista branco que organizou a marcha em Charlottesville, segundo uma lista fornecida ao "Post" pelo grupo Color of Change, uma organização de justiça racial que tenta influenciar os tomadores de decisões corporativas.

Spencer, cujo site foi bloqueado por grandes anunciantes no início deste ano, e que disse anteriormente ao "Post" que "isso não teria qualquer consequência na minha vida", afirmou que a medida do PayPal foi mais prejudicial. "Estou recebendo esse tratamento por causa de coisas que eu digo, e não coisas que eu faço", disse Spencer. "Nunca feri ninguém nem farei isso."

Outros sistemas de pagamento tomaram medidas semelhantes. A Apple abandonou na quarta-feira o processamento de pagamentos para grupos de ódio. A GoFundMe, um dos maiores sites de financiamento coletivo, fechou várias campanhas para angariar dinheiro para o simpatizante nazista que supostamente atirou seu carro contra a multidão de ativistas que protestavam no encontro de ódio, matando uma mulher e ferindo dezenas de pessoas.

Outro processador de pagamentos, Patreon, cancelou recentemente as contas de algumas figuras da direita alternativa. Isso inspirou um novo site de "crowdfunding", Hatreon, que se anuncia como uma empresa que não policia a expressão.

As companhias tecnológicas há muito contam com uma lei de 20 anos que as protege de responsabilidade por conteúdo ilegal hospedado em suas plataformas.

Quanto mais elas se dedicam a policiar o discurso –tomando decisões subjetivas sobre o que é ofensivo e o que não é–, mais elas são suscetíveis de minar sua própria imunidade e abrir-se à regulamentação, segundo Susan Benesch, diretora do Dangerous Speech Project, um grupo sem fins lucrativos que pesquisa a intersecção entre conteúdo online perigoso e livre expressão.

Lee Rowland, advogado sênior do Projeto de Tecnologia, Privacidade e Expressão da União Americana de Liberdades Civis, advertiu os consumidores contra condenarem rapidamente as empresas que hospedam até "o mais vil discurso de supremacistas brancos que vimos exposto nesta semana".

"Nós contamos com a internet para ouvirmos uns aos outros", disse Rowland. "Devemos tomar muito cuidado antes de pedirmos que as plataformas de discurso de ódio desapareçam, porque isso empobrece nossa conversa e prejudica nossa capacidade de apontar casos de supremacia branca e os enfrentarmos."

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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