Folha de S. Paulo


Com retórica de Trump, EUA se tornam país perigoso

Dizer que a América constitui "uma ameaça à paz mundial" faz parte normal da propaganda política russa e iraniana há muitos anos. Para aqueles que acreditam na aliança ocidental, é doloroso reconhecer que agora existe alguma verdade nessa ideia. Sob Donald Trump, os Estados Unidos parecem ser um país perigoso.

Nos últimos sete dias Trump trocou ameaças nucleares ou quase com a Coreia do Norte, lançou ameaças vagas de ação militar contra a Venezuela e flertou com supremacistas brancos em casa.

Ele está sendo o exato oposto da liderança calma, previsível e constante que os aliados dos EUA esperam de Washington.

As ameaças prontas que ele lançou à Coreia do Norte, dizendo que ela corre o risco de enfrentar "fogo e fúria" de uma América cujas armas estão "carregadas e prontas para disparar", foram especialmente irresponsáveis.

Mesmo que se trate de um blefe, isso coloca em risco a credibilidade dos Estados Unidos e gera o risco de desencadear uma escalada do regime de Kim Jong-un, que ameaça disparar mísseis perto do território americano de Guam.

Fato ainda mais alarmante, a administração Trump está flertando abertamente com a ideia de um ataque preventivo contra a Coreia do Norte, argumentando que um Kim Jong-un com armas nucleares não poderá ser detido.

Mas, se os EUA puderam contar com a dissuasão para conter a ameaça nuclear da Rússia de Stalin e da China de Mao, com certeza podem fazer o mesmo com a Coreia do Norte de Kim. Todos os presidentes anteriores rejeitaram a ideia de ataques preventivos a países dotados de armas nucleares –por razões óbvias.

A crise internacional que Trump está alimentando é cada vez mais inseparável dos problemas domésticos que afligem seu governo. A investigação encabeçada pelo ex-diretor do FBI Robert Mueller sobre a intervenção russa na eleição americana se aproxima cada vez mais do círculo interno do presidente.

O Congresso está paralisado, e a Casa Branca é um carrossel de demissões e complôs. E agora há violência política nas ruas, com supremacistas brancos e neonazistas atacando e até matando manifestantes em Charlottesville -enquanto o presidente faz declarações evasivas e ambíguas, falando desde um campo de golfe.

O perigo é que essas crises múltiplas se fundam, levando um presidente assediado a ceder à tentação de explorar um conflito internacional para escapar de suas dificuldades internas.

Esta semana Sebastian Gorka, um assessor polêmico da Casa Branca, utilizou a crise norte-coreana para pressionar os críticos domésticos de Trump a recuar, dizendo à Fox News: "Durante a crise dos mísseis de Cuba demos respaldo a JFK. Isto agora é análogo à crise dos mísseis em Cuba. Precisamos nos unir."

O flerte de Gorka com a ideia de que a ameaça de guerra poderia levar os americanos a se unirem em torno do presidente deve alarmar qualquer pessoa com consciência da história. Os governos que enfrentam uma crise em casa frequentemente se mostram mais inclinados a buscar aventuras fora do país.

KCNA/via Reuters
North Korean leader Kim Jong Un inspected the Command of the Strategic Force of the Korean People's Army (KPA) in an unknown location in North Korea in this undated photo released by North Korea's Korean Central News Agency (KCNA) on August 15, 2017. KCNA/via REUTERS REUTERS ATTENTION EDITORS - THIS PICTURE WAS PROVIDED BY A THIRD PARTY. NO THIRD PARTY SALES. SOUTH KOREA OUT. NO COMMERCIAL OR EDITORIAL SALES IN SOUTH KOREA. ORG XMIT: GDY01
O ditador norte-coreano, Kim Jong-un, analisa plano para teste de mísseis contra a ilha de Guam

Exemplo: o governo alemão que conduziu a Europa à Primeira Guerra Mundial se sentia agudamente ameaçado por adversários políticos nacionais. Mas, no dia em que a guerra eclodiu, o Kaiser exultante disse a uma multidão: "Não reconheço mais partidos ou filiações; hoje somos todos irmãos alemães". Ou, como disse Gorka na semana passada: "Estes são os momentos em que precisamos nos unir como nação".

Líderes que enfrentam pressão doméstica severa também mostram mais tendência a agir de modo irracional.

Durante a crise de Watergate, membros do gabinete de Richard Nixon mandaram os militares checarem com eles antes de obedecerem a uma potencial ordem presidencial de lançar um ataque nuclear. Infelizmente, não está claro se qualquer membro do governo americano, então ou hoje, tem o direito de dar uma contraordem à do presidente se este decidir seguir o caminho nuclear.

Resta aos observadores externos torcer para que os "adultos" na administração Trump consigam controlar o presidente de alguma maneira. Mas, pelo menos em público, a resistência às ameaças de guerra de Trump vem sendo surpreendentemente fraca, tanto no Congresso quanto na administração.

HR McMaster, o assessor de segurança nacional do presidente, defendeu o discurso belicoso de Trump na televisão nacional. Enquanto isso, o próprio general McMaster vem sendo atacado pela ala nacionalista branca dos partidários do presidente, que o criticam por demitir alguns de seus aliados no Conselho de Segurança Nacional.

Na semana passada, enquanto a crise norte-coreana se intensificava, a hashtag "Sack McMaster" (demita McMaster) se multiplicava no Twitter, com os nacionalistas procurando expurgar seu novo inimigo da Casa Branca. É o oposto total do ambiente que deveria prevalecer na Casa Branca no momento em que um confronto nuclear potencial se aproxima no Pacífico.

Aqueles que esperam que o "Estado Profundo" americano contenha Trump –ou até o force a renunciar– provavelmente não estão fazendo mais do que colocar seus anseios em palavras. Forçar Trump a deixar a Presidência seria dificílimo e correria o risco de provocar ainda mais radicalização, tanto na política doméstica quanto na política externa dos Estados Unidos.

Uma última reflexão preocupante é que a emergência de Trump está parecendo, cada vez mais, ser um sintoma de uma crise mais ampla na sociedade americana, algo que não vai desaparecer mesmo quando Trump tiver deixado o Salão Oval.

A queda do padrão de vida de muitos americanos comuns e as mudanças demográficas que colocam em risco o status majoritário dos americanos brancos ajudaram a criar o pool de eleitores irados que elegeu Trump.

Some-se esse pano de fundo social e econômico aos receios de declínio internacional e a uma cultura política que venera as armas e os militares, e o resultado é a fórmula que produz um país cuja resposta a crises internacionais talvez seja, cada vez mais, ficar com suas armas "carregadas e prontas para disparar".

Tradução de CLARA ALLAIN


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