Folha de S. Paulo


Austeridade na Argentina é solo fértil para fortalecer Cristina Kirchner

Os murais na Villa Palito, na periferia miserável de Buenos Aires, que glorificam Cristina Fernández de Kirchner se multiplicaram desde que ela deixou o poder, mais de um ano e meio atrás.

Esta é a base eleitoral da ex-presidente argentina, um lugar onde os moradores consideram a líder populista e seu marido e predecessor Néstor Kirchner responsáveis por terem tornado habitável um lugar que antes não passava de um aglomerado de barracos precários.

Marcos Brindicci - 20.jun.2017/Reuters
A ex-presidente Cristina Kirchner chega ao evento de lançamento de sua campanha em Buenos Aires
A ex-presidente Cristina Kirchner chega ao evento de lançamento de sua campanha em Buenos Aires

"Antes, isto daqui era tudo lama. Não dava nem para chegar aqui", diz Hector Sposato, professor na escola local, passando ao lado de pilhas de lixo em putrefação.

Cristina alcançou status quase mítico entre muitos dos 2 milhões de habitantes do caótico município de La Matanza, onde fica a Villa Palito. O fervor de seus seguidores é comparável à devoção de muitos à heroína popular argentina Eva Perón, cuja imagem benevolente também sorri dos murais que se multiplicam.

"O apoio a Cristina é uma questão emocional. Não há nada de racional nisso", diz Sposato. Para ele, os moradores locais descartam as múltiplas acusações de corrupção feitas a Cristina, desconfiando que são politicamente motivadas.

O apoio entusiasmado que Cristina Kirchner ainda tem nas favelas da periferia da capital está deixando o presidente Maurício Macri ansioso antes das eleições legislativas de outubro. A expectativa é que as eleições primárias deste domingo (13) produzam um indício confiável de qual será o voto final.

Algumas sondagens mostram Cristina Kirchner na dianteira cômoda, liderando a corrida ao Senado pela província importantíssima de Buenos Aires, que contém quase 40% do eleitorado nacional.

Embora as autoridades confiem que a coalizão governista, Cambiemos (Mudemos) conquiste uma maioria nacional e fortaleça sua representação no Congresso, uma vitória da ex-presidente na província de Buenos Aires poderia consolidar sua posição de líder, na prática, da oposição peronista.

Isso alimentaria o receio de uma volta ao populismo, potencialmente afastando os investidores estrangeiros com os quais Macri está contando para reativar a economia e potencialmente colocando suas reformas pró-mercado em risco.

Cristina já está se beneficiando da lentidão e irregularidade da recuperação econômica. A Argentina luta para superar cinco anos de estagnação econômica. Os moradores mais miseráveis de La Matanza foram prejudicados pelos cortes nos subsídios e pelo fechamento recente de muitas pequenas empresas dos setores têxtil e de calçados, pouco competitivos.

"Sempre vivemos em crise aqui", diz Celeste Grandi, gerente de uma pequena cooperativa em La Matanza. A ONG Teto, que constrói casas para moradores pobres, estima que apenas em La Matanza há 115 favelas, a maioria das quais existe há pelo menos 30 anos, ou seja, é anterior à era dos Kirchner.

Grandi se recorda dos anos difíceis que antecederam a crise econômica argentina de 2001, mas diz que a pressão foi aliviada durante os dos Kirchner, de 2003 a 2015, por subsídios e auxílios em dinheiro.

"Não é que a vida fosse ótima antes, mas com Macri no poder não temos dinheiro para nada", ela explicou. "Quando nos dizem que a economia está melhorando, parece uma piada cruel."

O padre jesuíta Rodrigo Zarazaga, que estuda as favelas de Buenos Aires há anos, não hesita quando é perguntado o porquê de Cristina Kirchner conservar popularidade tão grande na região.

"Em duas palavras: transferências monetárias", ele responde, citando o aumento grande das aposentadorias, o pagamento de auxílios mensais para famílias com filhos pequenos e os subsídios à eletricidade e aos transportes públicos.

"As pessoas se lembram que com Cristina no poder, puderam comprar um carro, uma geladeira ou um televisor de tela plana. Sim, os últimos anos da Presidência dela foram mais duros, mas houve muitos anos antes disso que foram bons", ele comenta.

Contudo, enquanto a maioria das pessoas parece culpar Macri pelas dificuldades econômicas que enfrenta –apesar de ele ter herdado um país à beira de uma crise da balança de pagamentos—, muitas pessoas em La Matanza fazem críticas iguais aos Kirchner.

Sandra Oviedo, ex-vereadora em La Matanza pelo partido de esquerda Livres do Sul, diz que a Villa Palito é o único projeto de obras públicas bem-sucedido dos Kirchner. Outros projetos habitacionais muito maiores na área foram abandonados pela metade e depois saqueados pelas pessoas que iriam ser seus moradores.

Hospitais foram inaugurados com grande fanfarra, mas continuam vazios até hoje, sem equipamentos nem profissionais. O Hospital Presidente Néstor Kirchner, que ocupa uma posição de destaque em uma das avenidas principais de La Matanza, teve duas cerimônias de inauguração. Hoje uma viatura policial solitária fica estacionada diante do hospital, para evitar roubos e vandalismo.

O desempregado Daniel Riso, do movimento social Bairros em Pé, não vai votar em Cristina Kirchner outra vez. "Os Kirchner nos deram a ilusão de termos alguma coisa. Mas, no final, não tínhamos nada."

Tradução de CLARA ALLAIN


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