Folha de S. Paulo


'Tratado como lixo' no Sul, desertor quer voltar para a Coreia do Norte

Divorciado e sem dinheiro, Kwon Chol Nam fugiu da Coreia do Norte para a China em 2014, atravessando um rio a pé numa noite e depois passando sobre uma cerca de arame farpado. Após uma viagem perigosa que incluiu a travessia a pé de uma selva no Laos, ele chegou à Tailândia, de onde foi autorizado a voar para a Coreia do Sul para começar vida nova.

Depois de todas essas dificuldades e esses perigos, Kwon quer que a Coreia do Sul o autorize a voltar para o Norte.

"É preciso andar no cavalo para saber se é a montaria certa para você", ele explicou, entrevistado em Seul. "Eu tentei, mas a Coreia do Sul não é o certo para mim. Quero voltar ao Norte para viver com minha ex-mulher e meu filho de 16 anos."

A Coreia do Norte é um dos países mais politicamente opressivos do mundo. Não importa. Kwon diz que se desiludiu com a vida na capitalista Coreia do Sul, onde, alega, desertores norte-coreanos como ele são tratados como cidadãos de segunda categoria.

"Eles me xingavam, me tratavam como idiota e me pagavam menos do que é pago a outros que fazem o mesmo trabalho, só por eu ser do Norte", disse Kwon, indignado.

Para angariar apoio a seu pedido incomum, ele vem dando entrevistas coletivas à imprensa, enviou petições às Nações Unidas e se manifestou com cartazes diante de edifícios governamentais em Seul.

Mais de 30 mil norte-coreanos fugiram para a Coreia do Sul desde que seu país foi atingido por uma carestia profunda, na década de 1990. Nos últimos cinco anos, 25 deles reapareceram misteriosamente na Coreia do Norte.

As autoridades sul-coreanas suspeitam que esses "desertores de repetição", como são conhecidos os que retornam à Coreia do Norte, podem ter sido atraídos à China, onde podem ter sido sequestrados e levados de volta ao Norte. Ali, o governo os utiliza para fins de propaganda política, fazendo-os falar publicamente contra o "inferno em vida" que disseram ter encontrado na Coreia do Sul.

Kwon tentou voltar à Coreia do Norte com seus próprios meios, mas acabou sendo posto na prisão por alguns meses na Coreia do Sul. Como todos os desertores, quando chegou ao Sul ele se tornou cidadão sul-coreano, e nenhum sul-coreano pode visitar a Coreia do Norte legalmente sem autorização do governo.

Agora Kwon está pedindo abertamente que a Coreia do Sul e repatrie. Ele é apenas o segundo desertor a lançar tal apelo. A costureira norte-coreana Kim Ryen Hi está fazendo um esforço semelhante desde 2015.

Mas, na dividida península coreana, onde os dois países permanecem oficialmente em guerra e não deixam seus cidadãos sequer trocar cartas, atravessar a fronteira fechada para voltar para casa é quase impossível.
Não existe saída legal para desertores como Kwon, que não conseguiram adaptar-se à vida na Coreia do Sul e querem retornar ao Norte.

"Estes casos ressaltam a complexidade da questão das separações familiares, que começou 70 anos atrás, e o fato de que ela continua a assumir novas formas e afetar profundamente as pessoas na península coreana", disse Tomás Ojea Quintana, relator especial das Nações Unidas para os direitos humanos na Coreia do Norte, que conversou com Kwon em julho.

O caso de Kwon é uma dádiva para a Coreia do Norte, em termos de propaganda política. "Como ficamos sabendo pelo protesto choroso de Kwon Chol Nam, que diz que não consegue mais viver no inferno chamado Coreia do Sul, muitos de nossos cidadãos estão sendo mantidos à força no Sul e anseiam retornar à sua pátria", disse o Norte em comunicado em junho, acrescentando que a situação de Kwon revela que o discurso de humanitarismo da Coreia do Sul não passa de hipocrisia.

Em 2014, Kwon, 44 anos, vendia ervas perto da fronteira com a China quando ele e uma mulher que conhecera enquanto colhiam mirtilos fugiram, atravessando a fronteira. A mulher tinha estado na China antes e disse a Kwon que ele poderia ganhar muito dinheiro na China.

Mas, quando ele chegou à China, após uma travessia repleta de dificuldades, nada aconteceu conforme o previsto.

A mulher desapareceu. Kwon acabou nas mãos de um traficante de pessoas que prometeu levá-lo à Coreia do Sul por US$2.500. Após uma viagem árdua que levou um mês, ele chegou à Coreia do Sul em novembro de 2014 e se fixou em Ulsan, cidade industrial no sudeste do país.

Como outros desertores, porém, Kwon sofreu para fazer a transição do sistema totalitário e altamente controlado do Norte para a sociedade capitalista, hipercompetitiva e acelerada da Coreia do Sul. Segundo um estudo de 2016 do Instituto Coreano de Unificação Nacional, 63% dos desertores dizem que sofrem discriminação no Sul.

Kwon trabalhou na agricultura e na construção. Foi ridicularizado frequentemente por não entender as palavras em inglês empregadas pelos sul-coreanos na linguagem diária. Medindo pouco mais de 1,5 metro, ele não se via tendo um futuro em empregos que demandassem força física.

As saudades de sua família na Coreia do Norte eram crescentes, especialmente de seu filho. Kwon economizou US$4.500 e, com a ajuda de intermediários, já que não são permitidas transferências bancárias entre as duas Coreias, enviou o dinheiro à sua ex-mulher na Coreia do Norte, que lhe disse que queria que ficassem juntos outra vez. Depois de saber que seu pai morrera em sua ausência, ele se sentia culpado por ter abandonado sua família. Para agravar seus problemas, o intermediário que o levara da China à Tailândia o processou, acusando-o de não ter pago o valor total devido.

Kwon disse que acabou "explodindo" em maio do ano passado. Quando não recebeu o pagamento prometido por carregar tijolos, ele pediu à polícia que interviesse, mas os policiais tomaram o partido de seu chefe sul-coreano, que negou a acusação de Kwon.

Em 22 de junho do ano passado, 12 policiais invadiram sua casa e o prenderam pela acusação de conspiração para fugir para a Coreia do Norte, um crime cuja punição pode ser até sete anos de prisão. Kwon foi solto em setembro, quando um juiz suspendeu sua sentença de um ano de prisão.

Desde então ele está desempregado, e outros desertores da Coreia do Norte o evitam. Ele cata pontas de cigarro do chão para fumar.

"Passei por dificuldades no Sul que eu não conhecia no Norte", ele disse. "Tenho medo de viver na Coreia do Sul."

Tradução de CLARA ALLAIN


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