Folha de S. Paulo


Cidade se torna símbolo da crise de violência no México

Ele despencou em uma velha cadeira branca, com o pescoço virado para a direita de um jeito desnaturado. Havia um celular a centímetros de distância, como se ele tivesse acabado de depositá-lo. Seus sapatos desamarrados estavam sob as pernas estendidas, uma imagem mórbida do que esta cidade se tornou.

Israel Cisneros, 20, morreu instantaneamente na casa de um cômodo de seu pai. Quando a polícia chegou à cena do crime, seu segundo homicídio naquela tarde, o sangue que escorria do ferimento de bala em seu olho direito tinha começado a secar e rachar, deixando uma pele com escamas vermelhas sobre seu rosto e pescoço.

Esta era uma das partes mais seguras do México, um lugar aonde as pessoas que fugiam da infame guerra das drogas no país vinham buscar refúgio. Agora, as autoridades aqui em Tecomán, uma tranquila cidade agrícola no Estado litorâneo de Colima, mal se importam quando dois assassinatos ocorrem em um intervalo de poucas horas. Simplesmente isso não é mais tão raro.

No ano passado, a cidade se tornou o município mais mortífero do México, com um índice de homicídios semelhante ao de uma zona de guerra, segundo uma análise independente de dados do governo. Neste ano o número está a caminho de dobrar, tornando-o talvez o exemplo mais gritante de uma crise nacional.

O México está alcançando seu ponto mais mortal em várias décadas. Mesmo com mais de 100 mil mortes, 30 mil pessoas desaparecidas e bilhões de dólares jogados na fornalha na luta de décadas do país contra o crime organizado, as chamas não recuaram. Segundo certas medições, elas só estão piorando.

Os últimos meses definiram recordes especialmente terríveis: mais cenas de homicídios surgiram em todo o México do que em qualquer ponto desde que o país começou a registrá-las, há 20 anos.

Algumas cenas de crimes, como o quarto onde Cisneros foi encontrado morto em sua cadeira, tinham só uma vítima. Outras tinham várias. Mas sua frequência crescente aponta para um aumento alarmante da violência entre os cartéis em guerra.

Grupos criminosos estão varrendo partes do México que costumavam ser seguras, criando uma enxurrada de mortes que, segundo algumas contagens, superam a chacina experimentada durante o auge da guerra das drogas, em 2011.

"O que está acontecendo aqui acontece em todo o Estado, no país todo", disse José Guadalupe García Negrete, prefeito de Tecomán. "É como um câncer."

Para o presidente Enrique Peña Nieto, a torrente é muito mais que uma condenação aos esforços do governo para combater o crime organizado. É um desafio fundamental à sua narrativa orientadora: que o México está avançando muito além das amarras da violência e da insegurança.

"O governo Peña Nieto subestimou seriamente, ou não compreendeu, a natureza do problema que o México está experimentando", disse David Shirk, um professor na Universidade de San Diego (EUA) que estudou a guerra das drogas. "Eles pensaram que usando o marketing poderiam mudar a conversa e dirigir a atenção da população para todas as coisas boas que estão acontecendo, para longe do problema de violência que eles achavam que era totalmente exagerado."

O governo diz que levou a violência tão a sério quanto qualquer outra coisa. Mas o aumento dos homicídios vem de muitas forças, diz ele: a fraqueza da polícia local e estadual, a fragmentação dos grupos criminosos depois que seus líderes foram presos, a maior demanda por drogas nos EUA e o fluxo de dinheiro e armas que ele envia de volta ao México.

"O governo da República se manifestou publicamente sobre o recrudescimento da violência como uma questão prioritária", disse o Ministério do Interior em um comunicado, acrescentando que ele empregou as Forças Armadas em cidades perigosas como Tecomán.

Mas diante do aumento de homicídios as autoridades também apresentaram um novo culpado para ajudar a explicá-los: as amplas reformas legais implementadas por seus antecessores.

Iniciado em 2008 e concluído no ano passado com a ajuda de mais de US$ 300 milhões dos EUA, o novo sistema judicial é amplamente considerado a mudança mais importante na jurisprudência mexicana em um século.

Destinado a reparar o Estado de direito no país, ele essencialmente adotou o modelo usado nos EUA, em que a inocência é presumida antes da culpa, a evidência é apresentada em tribunais abertos e a corrupção é mais difícil de esconder.

Mas o novo sistema legal inibe as detenções arbitrárias. Os suspeitos detidos sem provas foram libertados, levando a um coro crescente de autoridades que afirmam que o novo sistema é responsável pelo surto de crime e impunidade que deveria evitar.

Há meses, autoridades graduadas do partido do presidente vêm depositando as bases para desgastar o novo sistema legal, visando proteções civis básicas como a inadmissibilidade de provas obtidas por meio de tortura. E com a piora da violência o governo tem nova munição para reverter as reformas jurídicas, pressionando por poderes mais amplos como a capacidade de deter suspeitos durante anos sem julgamento.

García, o prefeito de Tecomán, compreende muito bem o dilema do presidente. Como um de sete filhos de uma família de agricultores daqui, ele é um feroz defensor de sua cidade e não quer que ela se torne sinônimo de assassinato.

"Você não pode atacar um problema fundamental como este podando as folhas ou os ramos", diz García, que usa muitas metáforas agrícolas. "É preciso ir às raízes."

Por isso ele decidiu levar sua mensagem aos jovens. Em uma tarde recente, dezenas de escolares faziam fila sob o calor úmido para sua formatura na escola elementar. O prefeito ajeitou o chapéu e mergulhou em seu discurso.

Tecomán estava perdendo seus valores, as tradições que mantinham as famílias intactas e os criminosos à distância, afirmou. Ele secou a testa e continuou. Forças externas estavam rasgando o tecido da comunidade, e os cidadãos precisavam redobrar seus esforços para se manter fortes diante disso tudo.

"Nós comemoramos a vida, e não a morte, aqui em Tecomán", disse García. "Devemos ser os arquitetos de nossas vidas e nossos futuros."
As estatísticas mensais do governo, que remontam a 1997, sugerem um caminho difícil à frente.

Os dados acompanham as cenas de crimes onde podem ter ocorrido uma, duas ou dez mortes. Maio e junho, os últimos meses disponíveis, marcam recordes consecutivos no número de cenas de crimes nos últimos 20 anos.

Uma ousadia repentina prevalece nas ruas de Tecomán. Em uma noite recente, um Volkswagen vermelho percorreu as ruas congestionadas a 80 km/h. Quatro carros de polícia o perseguiram antes que um policial atirasse no pneu traseiro.

O motorista lutou com a polícia. Algemado, ele olhou para o policial que o sujeitava e prometeu que eles se veriam de novo.

"Você sabe como isto termina e o que acontece com você", disse ele antes de gritar para um amigo: "Venha matá-los agora mesmo. Mate-os!"

Tradução de LUIZ ROBERTO M. GONÇALVES


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