Folha de S. Paulo


Retomada de Mossul das mãos do Estado Islâmico deixa rastro de mortos

"Você não tem medo de mim? Você não se assusta comigo?"

"Não, eu sei que você não me atacaria sem ter uma ordem para fazer isso."

"Não, eu nunca faria isso."

"Mas você gostaria de receber essa ordem?"

"Claro!"

Ali, apenas o sol não precisava de uma ordem superior para ser violento, a temperatura já estava acima dos 50°C. Sem refrescar, o vento quente daquela manhã em Mossul entrava por nossas narinas misturado à poeira e ao fedor nauseante e oleoso dos incontáveis corpos que apodreciam por toda parte.

Ao nosso lado, o corpo de um homem, jogado de bruços sobre as cinzas da vegetação queimada, ainda deixava sangue fresco escorrer através de vários ferimentos.

Haider e seus soldados o haviam executado segundos antes. Estávamos sob a ponte mais antiga de Mossul, destruída meses antes por ataques aéreos que isolaram as partes leste e oeste da cidade. Ali, a polícia federal iraquiana havia montado o que chamava de "armadilha" contra militantes do Estado Islâmico tentando fugir atravessando o rio Tigre a nado.

Haider, um primeiro tenente de 32 anos da cidade de Bagdá, era o responsável por ativar a armadilha todas as vezes que uma presa, exausta ou ferida, sendo carregada pela correnteza, tentasse encontrar refúgio entre as ferragens da ponte que se contorciam atravessando aquela parte do rio.

Apesar do rosto sério e abatido, de sua expressão de terror e cansaço, quando foi capturado pelos soldados da primeira divisão da polícia federal, ao sair do rio, o homem estendido morto a poucos metros de nossos pés aparentava boas condições físicas.

CELULARES

Ao contrário dos milhares de civis que haviam deixado aquela mesma parte da cidade, esqueléticos e doentes, seu corpo estava bem nutrido, seus braços eram fortes e suas costas eram largas como as de alguém que se exercita especificamente para isso.

Seu cabelo era curto e sua barba suficientemente longa para que um soldado o tirasse da água puxando-a.

Ele vestia uma calça escura que chegava até pouco abaixo de seus joelhos e usava uma camiseta branca com a palavra "Flórida" estampada sobre o desenho de uma paisagem muito diferente daquela em que ele se encontrava naquele momento.

Tentava, desesperadamente, se comunicar com os soldados que o espancavam, gritavam e filmavam toda a situação com seus celulares.

Dizia repetidamente que não era um combatente: "Ana last Daesh, Ana last Daesh Saidi!".

Editoria de Arte/Folhapress

Suas forças e suas esperanças de sobreviver duraram apenas os poucos metros e minutos que os soldados iraquianos precisaram para arrastá-lo enquanto o despiam, rasgando suas roupas violentamente.

Sem suportar a dor e a humilhação dos golpes e ameaças que recebia, em total desengano, o homem permitiu que seu corpo caísse sem nenhuma resistência sobre o chão para ser imediatamente executado com diversos disparos de fuzis e pistolas.

Contente, Haider começou a caminhar em direção à sombra, sorrindo ao lado de seus soldados enquanto comparavam entre si os vídeos do assassinato que haviam acabado de cometer.

Um boicote contra a mídia havia sido imposto pelo Exército iraquiano, restringindo severamente o acesso de jornalistas ao front.

Mas os meses que estive embutido com a polícia federal nas linhas de frente de Mossul e a confiança que esses soldados tiveram em mim permitiram que eu estivesse presente naquele momento.

No entanto, testemunhar as consequências da última batalha contra a milícia do Estado Islâmico não aconteceu sem que eu sofresse ameaças de prisão e, por fim, fosse forçado a deixar o local sob a promessa de disparos vindos de um comandante das forças especiais do Exército.

O dia 17 de julho marcava exatamente uma semana desde que o premiê iraquiano, Haider al-Abadi, havia estado em Mossul para declarar oficialmente a vitória sobre a facção terrorista que durante três anos controlou a cidade e chegou a ameaçar invadir a capital, Bagdá.

A necessidade de uma "armadilha" para eliminar combatentes do Estado Islâmico ainda ativos na cidade, porém, deixava claro que a declaração de vitória, se não fosse prematura, havia sido feita para servir a algo outro à verdade.

MÍSSEIS

A poucas centenas de metros corrente acima, soldados das forças especiais iraquianas ainda combatiam os últimos militantes do Estado Islâmico.

Os disparos de seus fuzis só foram abafados com a chegada de um helicóptero do Exército que, com voos rasantes e mergulhos agudos, disparava mísseis e rajadas de metralhadora contra um determinado ponto também às margens do rio Tigre.

Os ataques aéreos duraram menos de uma hora. Em um vídeo divulgado em redes sociais pelo Exército, uma câmera instalada no helicóptero mostra como alguns poucos sobreviventes foram mortos enquanto tentavam inutilmente se esconder dos disparos e explosões.

Eufóricos com a iminência de uma vitória definitiva, soldados de todos os batalhões começaram a festejar enquanto observavam o que parecia ser um show de acrobacias aéreas a poucos metros de seus olhos.

Uma nuvem de poeira fina se levantou, irritando ainda mais os olhos e as narinas de todos. Um jovem soldado usando uma bandeira iraquiana como se fosse uma capa de super-herói e dois companheiros escalavam as ruínas dos prédios destruídos para chegar ao ponto recém-conquistado.

Braços, pernas, cabeças, centenas de corpos inteiros ou destroçados, decompondo há muito ou há pouco tempo, estavam espalhados por todas as partes, por cima e embaixo de um enorme amontoado de escombros.

A cena onde os últimos combatentes do Estado Islâmico e suas famílias foram mortos só poderia ser comparada a um inferno.

Soldados reviravam com pressa todo o entulho ao redor, buscando armas e documentos sem se importar com o fato de que praticamente todos os seus passos eram sobre os corpos dos terroristas, mas também sobre os corpos de mulheres e crianças.

A menos de dois metros de tocar as águas do rio Tigre, o corpo sujo de um bebê vestindo apenas uma camiseta camuflada ainda estava inteiro jogado debaixo de pedaços de metal e arame farpado.
Seu nascimento e sua morte haviam ocorrido há pouco.

Sob seus pés, um retrato colorido de um homem jovem que não aparentava ser iraquiano. O corpo ressecado pelo sol de uma mulher estendida em forma de crucifixo e os corpos mutilados de pelo menos outras quatro crianças mais velhas estavam a poucos metros de distância. Seriam eles seu pai, sua mãe e seus irmãos e irmãs?

Como se tivessem marcado um encontro para caminhar de mãos dadas, a gestação daquela criança e as ofensivas militares que derrotaram o EI em Mossul haviam começado nove meses antes.
Agora, continuam aqueles que nascem e vivem com as consequências de crimes cometidos para que uma paz embrionária possa também um dia existir no Iraque.


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