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Ambiente de ódio foi criado por quem criticou minha visita, diz clérigo do Irã

Gabriel Cabral/Folhapress
O aiatolá Mohsen Araki, clérigo do Irã, dá entrevista à Folha nesta sexta (28) em São Paulo
O aiatolá Mohsen Araki, clérigo do Irã, dá entrevista à Folha nesta sexta (28) em São Paulo

Em sua primeira visita ao Brasil, o clérigo do Irã Mohsen Araki, 61, despertou críticas de líderes religiosos que o acusam de pregar um discurso de ódio, especialmente contra o Estado de Israel.

"Eles alegam o diálogo e a convivência tentando nos proibir de entrar no Brasil", afirmou o aiatolá na manhã desta sexta-feira (28), em entrevista exclusiva à Folha. "Esse ambiente que temos, de ódio e condenação, quem criou esse ambiente, essa polêmica? Foram eles."

Em ofícios enviados na semana passada ao Ministério da Justiça e ao Ministério das Relações Exteriores, a secretária municipal de Direitos Humanos do Rio, Teresa Bergher, pediu que a entrada de Araki no país fosse barrada por ele proferir "com frequência discursos de ódio".

A Federação Israelita do Estado de São Paulo divulgou nota no dia 19 repudiando a visita do aiatolá, "que em suas pregações conclama à destruição do Estado de Israel".

Para o clérigo, nascido no Iraque, um referendo sobre a formação de um Estado na Palestina "é a única forma que pode nos levar a uma paz definitiva, que vai atender aos objetivos dos muçulmanos, judeus e cristãos. Se as pessoas consideram essa sugestão como a extinção de um Estado, então eles interpretam da forma como eles querem".

Araki é um dos 88 membros da Assembleia dos Especialistas, instância responsável por indicar o líder supremo do Irã —cargo ocupado desde 1989 pelo aiatolá Ali Khamenei.

Em São Paulo, o clérigo participa de um evento organizado pelo Centro Islâmico no Brasil, neste sábado (29), sobre o combate ao terrorismo.

Ele vê "um papel negativo" dos EUA no Oriente Médio e avalia que as novas sanções contra iranianos anunciadas pelo presidente Donald Trump são um "risco à permanência do Irã" no acordo nuclear firmado em 2015 entre Teerã e o Ocidente.

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Folha - Nesta semana, líderes religiosos brasileiros, incluindo um muçulmano, assinaram uma nota condenando o discurso de ódio no contexto da sua visita. O que o sr. pensa sobre isso?

Mohsen Araki - Viemos para o Brasil a convite do Centro Islâmico para participar de um encontro que afirma os princípios da paz e do diálogo. Estranhamos muito que alguns grupos condenem a realização de um evento que apoia a convivência pacífica, que quer visar o diálogo entre os povos e as nações, que quer levar a mensagem verdadeira do islã.

É muito estranho para nós que alguns grupos, algumas pessoas, não querem nem ouvir. Eles alegam o diálogo e a convivência tentando nos proibir de entrar no Brasil.

Será que essas pessoas que hoje estão expandindo o ódio contra nós, será que eles não estão sendo também provocadores do ódio? Eles nem nos ouviram ainda, nem aconteceu o evento. Ainda não aconteceu nada para que eles possam condenar ou apoiar. Esse ambiente que temos, de ódio e condenação, quem criou esse ambiente, essa polêmica? Foram eles.

Eu e meus colaboradores atuamos há mais de 45 anos contra a injustiça, a opressão e o ódio. Tomamos a iniciativa contra o regime opressor de Saddam Hussein [ditador do Iraque entre 1979 e 2003], contra o Daesh [acrônimo em árabe para a facção terrorista Estado Islâmico]. Será que o combate ao terrorismo que estamos enfrentando, o combate ao Daesh, será que isso não é o bastante? Estes que nos acusam de divulgar o ódio, o que eles fizeram contra o terrorismo e o radicalismo no mundo?

Aqueles que condenaram a visita do aiatolá mencionaram textos em que o sr. pregaria a destruição de Israel. O sr. acredita que o Estado de Israel deva ser destruído?

Em primeiro lugar não temos nem fronteiras com o Estado de Israel. Não temos nenhum conflito direto com esse Estado. O Estado de Israel, desde a sua fundação, sempre esteve em guerra com seus vizinhos. Existe uma falha num Estado que por 70 anos não conseguiu estabelecer relações estabilizadas e pacíficas com seus vizinhos.

O Irã propôs um projeto para a solução desse conflito: um referendo no qual todos os seguidores de todas as religiões, muçulmanos, cristãos e judeus, participem e montem o Estado, o país que eles querem viver, da forma que eles decidirem.

O que queremos é a extinção da opressão nessa região. O que nós queremos não é o que eles estão interpretando, a interpretação deles cabe a eles, cada um é livre.

Nós fizemos uma proposta e temos uma ideia para estabelecer a paz definitiva entre os povos desta região. Só que pessoas que infelizmente não têm interesse na paz, lucram com as guerras, acabam interpretando as falas de acordo com seus interesses.

Essa proposta de referendo seria para um único Estado? Ele seria supervisionado pela ONU, por exemplo?

A primeira condição é que sim, a ONU deve realizar esse referendo, com a supervisão dos países da região. As pessoas que vão participar desse referendo são os habitantes desse país.

Israelenses e palestinos?

Todos os habitantes da terra daquela região. Isso é uma questão técnica que precisa depois ser discutida. Ou seja, todos os refugiados que sofreram algum tipo de expulsão da Palestina devem ser incluídos nesse referendo, porque eles moravam lá. Existem milhões de refugiados palestinos no Líbano, Síria, Jordânia, Tunísia, Egito. Eles têm o direito de decidir como vai ser o destino da terra deles. Certamente existem refugiados palestinos aqui no Brasil. A nossa proposta é que todos eles participem desse referendo.

Israelenses inclusos?

Todos os habitantes originais dessa terra: judeus, cristãos e muçulmanos. Existem pessoas que na verdade são convidados, não são daquela terra, vieram de outros países. Isso pode ser decidido depois do referendo. Tem que existir uma Constituição aprovada por todos os habitantes daquela terra, que eles possam concordar com essa Constituição. E ela tem que ser estabelecida com respeito a todas as classes do povo habitante daquela região.

Esta é a única forma que pode nos levar a uma paz definitiva, que vai atender aos objetivos dos muçulmanos, dos judeus e dos cristãos. Se as pessoas consideram essa sugestão como a extinção de um Estado, então eles interpretam da forma como eles querem.

A crise diplomática no Golfo entre Qatar e Arábia Saudita pode levar a algum conflito?

Infelizmente o papel dos EUA na região é um papel negativo. No mundo inteiro. Os EUA sempre estão tendo um papel de preservação da linguagem da guerra, do confronto. No leste do mundo, provoca guerras entre a China e outros países. Entre a Coreia do Sul e do Norte, entre Japão e China, entre Rússia e Ucrânia, e ultimamente provocou uma guerra entre Qatar e Arábia Saudita.

Há 40 anos eles divulgam para os países do Oriente Médio que o Irã é o inimigo. Foram eles, os EUA, que iniciaram a guerra contra o Iraque. Com o aval dos EUA, o regime de Saddam invadiu outros países. Quantas guerras, quantos conflitos foram provocados nessa região, e quem está lucrando com isso? As empresas de armamentos, os investidores americanos, tem um grupo de pessoas que lucra com a guerra.

Os americanos foram até a Arábia Saudita e levaram bilhões dos sauditas nesse último evento [visita de Donald Trump à Arábia Saudita]. E para poder fazer o mesmo com o Qatar, provocou uma intriga entre sauditas e qatarianos para conseguir alguma coisa do Qatar. Entendemos que a paz existe, até o momento que se pague para os americanos.

O acordo nuclear firmado em 2015 com o Ocidente foi bom para o Irã?

Tínhamos que chegar a um acordo e era o objetivo de todos os países. O governo do presidente Hasan Rowhani conseguiu chegar a um acordo. Certamente esse acordo teve benefícios para o Irã.

Na minha opinião, acho que poderia ser um acordo melhor, com mais benefícios, mas de qualquer forma tenho que respeitar o acordo feito pelo meu presidente, e respeitar todo o esforço feito pelo nosso governo para estabelecer esse acordo com o mundo.

Esperávamos que os EUA se mantivessem firmes nas condições do acordo. A falta de fidelidade dos americanos com o acordo nuclear coloca em risco o acordo em si e também a própria permanência do Irã nesse acordo.

A falta de respeito dos americanos com as condições desse acordo está deixando o acordo meio que abalado. Eles não deixam opções para o povo iraniano ou o governo, se eles estão descumprindo o acordo e talvez deixando em risco até o acordo de não proliferação nuclear.

As sanções do presidente Trump são um dos exemplos dessa falta de respeito, a cada momento tem um novo acordo quebrado por parte deles. O Irã tem muitas opções para responder a essas questões e certamente, se acontecer, eles vão se arrepender por ter quebrado esses acordos.


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