Folha de S. Paulo


Jogos Asiáticos expõem o blindado Turcomenistão

Marat Gurt - 25.mai.2015/Reuters
People gather in front of a monument to Turkmenistan's President Kurbanguly Berdymukhamedov during its inauguration ceremony in Ashgabat, Turkmenistan, May 25, 2015. Turkmenistan unveiled the first monument to Berdymukhamedov on Monday - a gilded 6-meter-high statue of the leader on horseback perched on a white cliff, reflecting his flourishing personality cult in the reclusive gas-rich nation. REUTERS/Marat Gurt TPX IMAGES OF THE DAY ORG XMIT: MOS02LEGENDA DO JORNALCULTO À PERSONALIDADE Inauguração de estátua do presidente do Turcomenistão, Kurbanguly Berdymukhamedov, em Ashgabat; monumento tem seis metros de altura
Estátua em ouro do presidente turcomano é inaugurada na capital, Achkhabad, em 2015

Em 2012, a mídia estatal do Turcomenistão decretou que a nação da Ásia Central entrava na "Era de Felicidade Suprema do Estado Estável".

Com 97% dos votos, o presidente Gurbanguly Berdymukhammedov conquistava um segundo mandato, num pleito descrito como "democracia de fachada" por especialistas.

Ele fora dentista e depois ministro da Saúde de seu antecessor Saparmurat Niyazov, morto em 2006, após 16 anos no cargo –um camarada afeito a políticas excêntricas, entre elas rebatizar os meses (abril virou o nome de sua mãe, por exemplo) e recriminar cinemas 3D, dentes de ouro e homens barbados.

Berdymukhammedov reverteu venetas do antigo paciente, como ao restituir óperas no país ("desnecessárias", dizia Niyazov). Em compensação, criou para si uma reputação própria que fortalece a fama de "Coreia do Norte da Ásia Central" adquirida por esta ex-costela da União Soviética.

Com a quarta maior reserva de gás natural do mundo e 5,3 milhões de habitantes (menor que Goiás), o Turcomenistão ocupará em setembro um lugar ao qual está pouco acostumado: sob os holofotes.

Lá acontecerão os Jogos Asiáticos de 2017, com 62 nações e chancela do Comitê Olímpico do continente.

"O que não falta é crise e repressão pelo mundo, mas o ocaso de direitos humanos no Turcomenistão é terrível. Agora haverá mais jornalistas do que nunca por lá, mas estamos muito preocupados que as autoridades os impeçam de reportar qualquer coisa que não os eventos esportivos", diz à reportagem Rachel Denber, especialista na ONG Human Rights Watch em antigos enclaves soviéticos.

O paradoxo está posto: ao mesmo tempo em que se abre para o mundo, o governo turcomeno é comandado por um homem que se autointitula Arkadag ("o protetor") e visto como espelho da ditadura de Kim Jong-un.

Os dois regimes não dão brecha para uma mídia livre, restringem a internet, cobrem seus edifícios com imagens de um líder que, segundo a Anistia Internacional, blindam seu países de qualquer "escrutínio internacional".
A diferença é que, ao contrário dos nortecoreanos, o Turcomenistão é uma espécie de Suíça local: declara-se politicamente neutra e evita se meter em quiproquós políticos com seus vizinhos.

Talvez por isso passe ao largo de maior interesse midiático. Quase nada se fala da supressão de direitos humanos em seu país natal, reclama à Folha Farid Tukhbatullin, ativista que se diz "repetidamente ameaçado com eliminação física" por autoridades.

"A mídia lembra do Turcomenistão quando algo extraordinário –engraçado– acontece por lá. Por exemplo, se o presidente participou de uma competição e caiu do cavalo. Ou quando o governo baniu a importação de cigarros", diz o diretor da ONG Iniciativa Turcomena, baseada na Áustria.

Em 2016, em campanha oficial, turcomenos jogaram maços em fogueiras e proferiram frases do tipo: "Durante a era da felicidade do nosso país estável, o respeitado presidente faz um bocado para promover uma sociedade saudável".

Há dois anos, a devoção do mandatário por equinos ganhou a forma de uma estátua dele montado num cavalo, numa peça banhada em ouro de 24 quilates e instalada sobre um pedestal de mármore.

Essa rocha esbranquiçada, aliás, é matéria prima para vários edifícios da capital turcomena, Asgabate. Em 2013, a cidade entrou no "Guiness Book" por ostentar a maior concentração de mármore branco (543 novos edifícios erguidos pela atual gestão). O editor-executivo do livro dos recordes, Craig Glenday, disse então que o esforço de reforma arquitetônica pilotado pelo governo turcomeno alcançou um nível espetacular".

"Asgabate perdeu faz tempo seu aspecto soviético e hoje lembra uma assustadora Las Vegas, com uma estrela gigante no topo do Palácio da Felicidade, um prédio para casamentos que muda de cor", descreveu o "New York Times".

Mas o país pouco tem da "felicidade suprema" evocada em vídeos como o do presidente cantando na TV estatal de suéter verde e violão branco, diz o ativista Tukhbatullin.

"Sim, o Turcomenistão é comparado à Coreia do Norte e à Eritreia em diversos critérios –democracia, leis, direitos humanos. E é tudo verdade. O número de prisioneiros é um dos mais altos do mundo –mais de 500 por 100 mil habitantes [o Brasil tem cerca de 300]. Jornalistas que tentam cooperar com a mídia estrangeira acabam na cadeia."

Dois exemplos: um freelancer conterrâneo a serviço da Radio Free Europe foi detido em 2015 em "falsas acusações de drogas, após tirar fotos de um parque de diversões". Um ativista que fotografou trabalho infantil em colheita de algodão teve destino similar.

A internet cresceu nos últimos anos, mas a conexão ainda é lenta e cara demais, e o acesso a sites "delicados" (como o de ONGs que denunciam) e redes sociais (Facebook, Twitter) continua restrito.

A interação com o mundo de fora praticamente inexiste. "Em 2015, 913 pessoas conseguiram um visto turístico. Quase não há investimento internacional", diz Tukhbatullin.

Uma exceção: Jennifer Lopez. E a presença da celebridade americana no país custou caro em mais de um sentido. Pelas críticas que recebeu por servir a um regime opressor e pelo alegado cachê: US$ 1,4 milhão para cantar no aniversário de 56 anos do ditador, em 2013 –com direito a um número em que trocou o ousado vestido branco por um traje tradicional turcomeno, vestido que vai até o pé, para cantar "parabéns, sr. presidente".

Em 2010, o WikiLeaks vazou um documento em que uma representante dos EUA no país definia Berdymukhammedov como "vaidoso" e "um cara não muito esperto".

A Folha procurou a missão permanente do Turcomenistão na ONU, mas não recebeu resposta. Segundo o Itamaraty, não há representação diplomática do país no Brasil.

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Onde fica: Turcomenistão

RAIO-X TURCOMENISTÃO

Área: 488 mil km² (menor que BA)
População: 5,3 milhões (meia São Paulo)
PIB: US$ 36,5 bilhões (menor que PA)


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