Folha de S. Paulo


Trump erodiu 'poder inteligente' dos EUA, diz autor do conceito

Seis meses foram tempo suficiente para o presidente Donald Trump dar início a uma erosão do poder exercido pelos Estados Unidos no resto do mundo, segundo o cientista político americano Joseph Nye.

Professor na Universidade Harvard e criador de alguns dos conceitos mais importantes sobre poder e liderança na política global, Nye, que trabalhou no governo do democrata Bill Clinton (1993-2001) e tem inclinação neoliberal, avalia que o presidente americano já fez o país perder seu poder de persuasão no resto do mundo —o "soft power", poder brando, conceito criado por ele nos anos 1980.

Nicholas Kamm/AFP
TOPSHOT - US President Donald Trump attends a meeting about healthcare in the Roosevelt Room at the White House in Washington, DC, on March 13, 2017. / AFP PHOTO / NICHOLAS KAMM ORG XMIT: NK2263
O presidente dos EUA, Donald Trump, durante reunião na Casa Branca, em Washington

Segundo ele, isso afeta indiretamente até mesmo o poder militar do país ("hard power"), pois o poder brando teria capacidade de multiplicar a força bruta dos EUA.

Com o encolhimento do "soft power", diz, os Estados Unidos perdem seu "smart power" (poder inteligente).

"Trump já produziu impactos sobre o 'soft power' americano. O índice Portland de países com mais 'soft power' divulgado neste mês mostra que os EUA perderam a liderança do ranking, em que estavam no ano passado", disse o pesquisador em entrevista à Folha, por e-mail.

"O 'poder duro' funciona melhor quando tem o poder brando como uma força multiplicadora. Chamo isso de 'poder inteligente'.

De fato, neste ano os EUA caíram do topo para o terceiro lugar no ranking "Soft Power 30", divulgado nesta semana. Criado pela consultoria britânica Portland com base no conceito de poder brando, o índice vai além do poder militar das nações e avalia a capacidade de convencimento e persuasão de 30 países no cenário global.

Desde a posse de Trump, a França, agora sob o centrista Emmanuel Macron, e o Reino Unido, governado pela conservadora Theresa May, ultrapassaram os EUA, segundo o estudo —o Brasil caiu da 24ª para a 29ª posição no ranking deste ano.

Nye entende que esse contexto de erosão de "poder inteligente" também moldou a participação do presidente americano na cúpula do G20, em Hamburgo, na Alemanha.

Durante o encontro dos líderes das maiores economias do mundo no início do mês, Trump foi tratado de forma pouco amistosa, sendo criticado pela decisão de sair do Tratado de Paris, e acabou de lado em negociações.

Mesmo que os EUA ainda devam ser reconhecidos como a maior potência econômica e militar do mundo, o foco excessivo do presidente em políticas que privilegiam o "núcleo duro" dos seus eleitores e a falta de diálogo com o resto do país —e do planeta—, bem como a propagação de informações falsas, fazem com que os EUA estejam se enfraquecendo, avaliou Nye.

"Trump já reduziu o nível de diálogo político nos EUA. Nunca havíamos visto um presidente que usa o Twitter para tratar de política ou que seja tão descuidado com a verdade. Sua taxa de aprovação hoje é de 36%, menos do que os 60% que seus antecessores tinham neste ponto do governo", disse. A aprovação de Trump, conforme a pesquisa, vai de 34% a 40%.

O acadêmico, avalia, entretanto, que nem mesmo a suposta experiência de Trump com grandes negócios ajuda seu estilo de governar.

"Trump foi moldado por sua experiência com mercado imobiliário de Nova York e reality shows. Nenhum dos dois é típico do mundo dos negócios de forma geral. Ele também tem pouca experiência com política na prática, ou de trabalhar com o Congresso, por exemplo", disse.

As dificuldades de Trump na política são comprovadas pelos revezes de seus projetos apresentados nos primeiros seis meses.

Desde que se tornou presidente, propostas centrais da sua campanha, como o muro na fronteira com o México, a reforma do sistema de saúde e o veto a imigrantes têm enfrentado dificuldades e não puderam ser implementados como ele queria.

Segundo Nye, o estilo de liderança incorporado pelo presidente nos primeiros meses de governo, deixando de lado o diálogo com outras forças políticas, rompeu com o modelo adotado por governantes antes dele. "Ele parece apelar especialmente à sua base política, em vez de focar no centro do espectro político. Isso é novo."

Editoria de Arte/Folhapress

Endereço da página:

Links no texto: