Folha de S. Paulo


Última batalha da Guerra Fria, conflito em Angola é resgatado em livros

Um dos conflitos mais "quentes" da Guerra Fria sempre foi um dos mais misteriosos. Até agora. O motivo: de 1975 a 1991, os dois principais protagonistas eram viciados em segredo (pelo menos um ainda é, de certo modo).

O fim da Guerra Fria entre o leste comunista liderado pela União Soviética e o ocidente capitalista liderado pelos Estados Unidos ajudou a encerrar aquela que foi chamada de "a última batalha quente da Guerra Fria" e a abrir tanto arquivos de documentos como liberar antigos participantes da trama para serem entrevistados.

Ricardo Bonalume Neto - dez.1995/Folhapress
Blindado soviético usado por cubanos e angolanos é abandonado em campo minado em Angola
Blindado soviético usado por cubanos e angolanos é abandonado em campo minado em Angola

De um lado estava uma ditadura comunista no Caribe, Cuba. Do outro, uma república autoritária e racista, a África do Sul da era do Apartheid.

Infelizmente para as populações envolvidas, o principal campo de batalha era Angola, ex-colônia portuguesa tornada independente em 1975, e que acabaria vivendo uma guerra civil só terminada em 2002. Morreram muito mais angolanos do que cubanos ou sul-africanos nessa "guerra por procuração" entre URSS e EUA.

Os livros descrevendo o que aconteceu entre 1975 e 1991 na África austral costumam aparecer aos poucos; muitos são difíceis de achar fora dos países em que foram publicados. Mas o século 21 mostrou que alguns temas passaram a ter interesse internacional, e trabalhos acadêmicos puderam se valer de fontes confiáveis.

"É o fim da Guerra Fria que tornou possível conduzir a pesquisa para este livro. Até o começo dos anos 1990, o segredo envolvia as políticas cubanas na África", escreveu o pesquisador italiano Piero Gleijeses, da Universidade Johns Hopkins (EUA), alundindo a seu primeiro —e seminal— livro sobre o tema, "Conflicting Missions: Havana, Washington, Pretoria, 1959-1976".

Gleijeses é até hoje o único acadêmico estrangeiro a ter tido acesso aos arquivos cubanos de governo da era de Fidel Castro (1926-2016). Isso fez dele alvo de ciúmes, e de acusações de ser muito pró-cubano —em seu primeiro livro sobre o conflito, ele se gaba de nunca ter estado na África do Sul.

Já na segunda parte da obra, publicada em 2016, "Visions of Freedom: Havana, Washington, Pretoria, and the Struggle for Southern Africa, 1976-1991", ele incluiu pesquisa feita nos arquivos da capital sul-africana.

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OUTROS LIVROS SOBRE O CONFLITO EM ANGOLA

"The Last Hot Battle of the Cold War: South Africa vs. Cuba in the Angolan Civil War", Peter Polack
O autor, escritor amador, fala especificamente do final da dupla intervenção em 1987-1988

"Battle on the Lomba 1987", David Mannall
Uma visão pessoal de um militar envolvido nas batalhas de 87-88

"SAAF's Border War: The South African Air Force in Combat 1966-89", Peter Baxter
Descrição bem ilustrada do papel da Força Aérea sul-africana no conflito

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O pano de fundo da Guerra Fria chega a ser esmagador. As guerras "quentes" do período opondo protegidos dos Estados Unidos ou da União Soviética dependiam tanto do momento histórico do relacionamento entre as superpotências como da sua disposição de fornecer armamento moderno, e liberar suas "aventuras".

Os países árabes, sem o armamento soviético, não teriam como atacar Israel em 1973; e sem o ressuprimento americano, os israelenses teriam muito mais dificuldade para dar a volta por cima.

Em 1975 os EUA viviam crises variadas. Não conseguiram manter seus aliados do Vietnã do Sul no poder, e o país foi devorado pelos comunistas do Vietnã do Norte.

O escândalo de Watergate tinha enfraquecido a Presidência, nas mãos de um débil ex-vice, Gerald Ford.

O todo-poderoso secretário de Estado Henry Kissinger queria dar um basta nessa decadência, e a possível tomada de Angola por um movimento alinhado à URSS tinha que ser contida por uma questão mais de prestígio do que de interesse nacional.

O problema era, e continuou sendo, o fato de que o principal e quase único aliado era a África do Sul do Apartheid, um país-pária desprezado por praticamente todo o resto do planeta.

Criou-se o mito de que os cubanos eram uma tropa de choque soviética, e que o país era mera marionete de Moscou. Mesmo analistas da CIA (agência de inteligência americana) discordavam dessa tese simplista; e os livros de Gleijeses a sepultaram de vez.

"Fidel [Castro] desafiou [o líder russo, Leonid] Brejnev enviando tropas a Angola em 1975 e desafiou [Mikhail] Gorbatchov em 1987, quando decidiu enviar importantes reforços a Angola para expulsar os sul-africanos do país de uma vez", escreveu o professor da Johns Hopkins.

CONFLITO TOTAL

Em 1987, o ano mais polêmico do conflito em Angola, a luta deixou de ser uma guerra de guerrilha para quase virar um conflito total.

A pequena cidade de Cuito Cuanavale, no sul angolano, foi o fulcro da questão.

A guerrilha Unita (União Nacional para a Independência Total de Angola), apoiada pelos EUA e África do Sul, queria tomar a cidade, ou pelo menos conter as invasões anuais que o governo de Angola fazia em seu território.

A participação sul-africana se deu principalmente com tropas blindadas e artilharia. A "bucha de canhão", a infantaria, era composta pela guerrilha angolana.

Os sul-africanos infligiram derrotas acachapantes a angolanos e cubanos. Mais do que tecnologia, era o treinamento intenso e as táticas mais flexíveis que contavam.

Blindados Ratel de 18 toneladas de projeto sul-africano, armados com canhões de calibre 90 mm, destruíram então 18 tanques T-55 de 40 toneladas, de projeto soviético, armados com canhões de calibre 100 mm, como mostra "South African Armour of the Border War 1975-89", de Kyle Harmse, publicado neste ano.

Segundo David Williams, autor de "On the Border, 1965-1990: The White South African Military Experience", entre setembro de 1987 e abril de 1988, os cubanos/angolanos tiveram 4.785 homens mortos em combate, contra 31 sul-africanos —e certamente algumas dezenas ou centenas da Unita. Números exatos nunca foram divulgados.

Foram destruídos ou capturados 94 tanques comunistas, contra três sul-africanos (todos vítimas de minas). Mais de 100 blindados cubanos-angolanos foram destruídos, contra oito sul-africanos. E por aí vai.

Mas Fidel Castro botou mais fichas na mesa. Estava disposto a escalar o conflito para conseguir a paz.

Os sul-africanos, odiados pelo resto do mundo, não toparam o blefe.

A ONU tentou três missões de paz no país —uma delas com substancial participação brasileira—, mas sem sucesso duradouro. Angola só voltou a ter paz com a morte do carismático líder da Unita, Jonas Savimbi, em 2002.

O saldo foi de centenas de milhares de mortos e feridos, e um território extensivamente tomado por minas explosivas até hoje.

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GUERRA FRIA
Principais datas do período

Fev.1945
Conferência de Yalta entre Roosevelt, Churchill e Stálin, os "três grandes" aliados da Segunda Guerra. A URSS obtém o controle da Europa Oriental

1949
Em abril, é ratificado o tratado da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), aliança militar ocidental liderada pelos EUA

1950
Começa a Guerra da Coreia. Stálin apoia a Coreia do Norte, equipada com armas soviéticas, que invade a Coreia do Sul apoiada pelos americanos

1953
Trégua deixa em suspenso a Guerra da Coreia; dois anos depois, soviéticos formam a aliança militar comunista, o Pacto de Varsóvia

1961
EUA fracassam na tentativa de invadir a Baía dos Porcos, em Cuba, recém-convertida ao socialismo; começa a construção do Muro de Berlim

1975
Com a ajuda da URSS, o Vietnã do Norte derrota o Vietnã do Sul, aliado dos americanos, que sofrem seu pior revés durante a Guerra Fria

1985
Mikhail Gorbatchov torna-se líder da URSS e inicia abertura política chamada "glasnost" e reestruturação econômica conhecida como "perestroika"

1989
Após onda de protestos varrer os regimes comunistas do Leste Europeu, cai o Muro de Berlim; dois anos depois, a URSS é dissolvida


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