Folha de S. Paulo


Autoimolação, estopim da Primavera Árabe, hoje é uma tendência sinistra

Quando Adel Dridi despejou gasolina sobre a própria cabeça e se incendiou, em maio passado, seu primeiro pensamento foi para sua mãe, Dalila, cujo nome é tatuado toscamente em seu braço. Mas outra pessoa também estava em sua mente: Mohamed Bouazizi, o vendedor de rua tunisiano cuja autoimolação desencadeou os levantes da Primavera Árabe de 2010.

Dridi, 31, também é um vendedor de frutas e, assim como Bouazizi, estourou depois que a polícia derrubou seus damascos, bananas e morangos no chão diante da Prefeitura desta cidade, onde ele nasceu.

"Eu quis me queimar porque estava queimando por dentro", disse Dridi em uma entrevista, deitado num colchão na casa de sua família, onde ainda se recuperava, com o pescoço e o peito marcados por queimaduras. "Eu queria morrer assim."

Sete anos depois que o protesto dramático e desesperado de Bouazizi ajudou a iniciar revoluções em toda a região, a frustração pela promessa não cumprida da Primavera Árabe é generalizada.

O regime autoritário retornou ao Egito. A Líbia é um caldeirão de caos. A Síria e o Iraque estão assolados por guerras civis. As monarquias do Golfo essencialmente não mudaram. A vizinha Argélia está paralisada.

Mas a grande ironia é que na Tunísia –o berço da Primavera Árabe e o único país que tem mais esperanças de realizar suas aspirações de democracia e prosperidade –o ato extraordinário de Bouazizi se tornou banal, seja motivado pela raiva, a depressão ou o grande desapontamento, ou com o fim de desafiar publicamente as autoridades.

A Tunísia avançou mais que qualquer outro país da região na direção da liberdade e da governança democrática, mas de modo geral foi incapaz de oferecer esperança e oportunidade de uma vida melhor.

Milhares de jovens abandonaram o país para trabalhar no exterior ou para unir-se ao grupo Estado Islâmico.

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A frustração diante desse fracasso não tem expressão mais terrível que a maré de autoimolações na Tunísia.

Os casos de autoimolação triplicaram nos cinco anos desde a revolução, segundo um estudo. O principal hospital de queimados do país, em Ben Arous, um subúrbio de Túnis, admitiu um recorde de 104 pacientes que se haviam incendiado em 2016.

O hospital recebeu mais de 80 casos por ano em média desde 2011, disse o cirurgião encarregado do pavilhão de queimados, doutor Amen Allah Messadine. O protesto público é hoje a segunda forma mais comum de suicídio neste país de 11 milhões de habitantes.

"O problema é que ela não diminui", disse Messadine, que está na linha de frente dessa tendência.

Para as autoridades de saúde pública, o fenômeno é tão intrigante quanto perturbador. Mas também é considerado uma medida profunda da mudança desestabilizadora, dificuldade econômica e sensação de injustiça constante que definem a vida na Tunísia, mesmo depois da revolução democrática.

"Esse tipo de suicídio representa mais uma atitude de dissidência da sociedade pós-revolução, que mudou profundamente", disse o doutor Mehdi Ben Khelil, um patologista forense cujo estudo mostra o aumento do número de autoimolações.

Dridi, o único ganha-pão de sua mãe e família desde os 14 anos, disse que quis fazer "como Bouazizi" na manhã de 10 de maio, quando policiais o mandaram sair, dizendo que não tinha pago pelo ponto de venda.

"A polícia derrubou minha banca", disse ele. "Mas a coisa piorou. Eles esparramaram minhas frutas e me levaram para seu carro. Lá começaram a me bater com força. Eu consegui escapar, e quando vi o posto de gasolina na minha frente não pensei duas vezes."

Ele se embebeu de gasolina diretamente da bomba e acendeu um isqueiro junto ao pescoço. Foi salvo por um motorista de ônibus que apagou as chamas com um extintor de incêndio.

Enquanto a maioria dos suicídios antes da revolução eram por motivos de saúde mental, os que ocorreram depois dela foram movidos principalmente por dificuldades econômicas e o desejo de desafiar as autoridades. Muitas vezes são praticados na frente de prédios públicos.

Dridi já tinha tentado se incendiar em público em 2012, mas foi impedido por observadores.

Ele disse que ganhava cerca de US$ 400 por mês antes da revolução, o que é o dobro do salário mínimo na Tunísia. Hoje diz que nunca sabe quanto vai vender ou quantas vezes a polícia o assediará.

Casos como o dele são um sinal de desespero social e ressentimento contra as autoridades, segundo profissionais de medicina.

"A maioria dos que sobreviveram nos disseram que simplesmente não suportavam mais", disse Nadia Ben Slama, uma psicóloga no hospital de Ben Arous. "Eles com frequência usam duas palavras em árabe: 'el khara', que significa impotência ou a sensação de opressão, e 'hogra', que significa sofrer desprezo ou escárnio de outros."

"Há um simbolismo no gesto público da autoimolação", acrescentou ela. "Geralmente é para denunciar a injustiça ou um opressor, mas também para fazer o outro se sentir culpado, aquele que testemunhou a injustiça e não fez nada contra. Este é a sociedade em geral."

A tendência está afetando uma nova geração mais jovem que amadureceu depois da revolução.

Ramzi Messaoudi se incendiou em 15 de fevereiro no pátio de seu colégio, enquanto todos estudavam na classe, em Bou Hajla, uma pequena cidade no centro da Tunísia. Ele morreu três dias depois devido às queimaduras.

O jovem tinha desavenças com seu professor de inglês, que o expulsou da classe diversas vezes, segundo seu pai e amigos.

Mas a família está arrasada. Sua irmã Rimeh, 20, que dividia o quarto com ele, chora sobre seus livros escolares. Seu pai, Nourredine Messaoudi, um motorista de miniônibus, ainda guarda na carteira o cartão de ônibus queimado de seu filho.

Ele sabia dos problemas do filho na escola e tinha tentado conversar com ele várias vezes. "Eu lhe disse para me chamar se tivesse mais problemas", disse o pai.

"Ainda não compreendo", continuou. "Ele era um bom menino. Gostava de artes marciais e futebol, tinha muitos amigos no Facebook e queria ser um militar."

"Ele simplesmente não suportou mais", disse Wissem Hadidi, 19, um amigo de infância. "Quando ele chegou ao hospital, ainda estava consciente e sorria. E ficou repetindo a palavra 'injustiça'."

Tradução de LUIZ ROBERTO M. GONÇALVES


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