Folha de S. Paulo


Palestinos da porção oriental de Jerusalém enfrentam vida dividida

Israeli Government Press Office/Reuters
Israelenses entram em Jerusalém Oriental, em junho de 1967, durante a Guerra dos Seis Dias
Israelenses entram em Jerusalém Oriental, em junho de 1967, durante a Guerra dos Seis Dias

Na penumbra de um clube de música alternativa lotado, no centro de Jerusalém Ocidental, uma dupla palestina de Jerusalém Oriental sobe ao palco para uma apresentação de hip-hop, com músicas que falam da ocupação, de polícia e de amor, entre outras coisas, quase sempre em árabe.

A plateia conhece algumas das letras e canta com os rappers, Muzi Raps e Raed Bassam Jabid. Mas os espectadores são em sua maioria jovens israelenses que falam hebraico, entre os quais soldados em licença de final de semana, que lotam a pista de dança.

Interações sociais entre judeus e palestinos como essa são raras em Jerusalém. Os palestinos as definem como "normalização cultural", e muitos deles rejeitam a ideia.

No momento em que os israelenses celebram o 50º aniversário da reunificação de Jerusalém, como resultado da guerra de junho de 1967, os palestinos e a maior parte do mundo consideram a porção oriental da cidade como terra ocupada, e Jerusalém continua profundamente dividida. Mas depois de cinco décadas, lidar com os israelenses se tornou inescapável para os moradores de Jerusalém Oriental.

"É um mundo totalmente diferente, uma vida totalmente diferente", disse Muzi Raps, cujo nome real é Mustafa Jaber, sobre seus amigos em Jerusalém Ocidental, a parte predominantemente judaica da cidade,. Jaber, 27, mora pertinho dali, no bairro muçulmano da Cidade Velha, logo adiante da linha do armistício que dividia a cidade antes de 1967 e se tornou uma fronteira invisível.

Os 320 mil palestinos de Jerusalém Oriental agora respondem por 37% da população da cidade. Suspensos entre Israel e a Cisjordânia, sobre a qual a Autoridade Palestina exerce controle limitado, muitos deles existem em uma espécie de limbo político.

Alguns levam uma vida dividida, trabalhando em cafés ou oficinas mecânicas de Jerusalém Ocidental durante o dia e protestando contra a ocupação de noite. Outros ostentam uma fachada pública inescrutável, e tentam encontra formas pessoais de paz com os israelenses.

A esta altura, metade da força de trabalho palestina de Jerusalém Oriental trabalha na outra porção da cidade, de acordo com o Instituto Jerusalém de Pesquisa Política, um centro de estudos independente israelense. E abaixo da superfície, o clima de desafio escancarado parece estar se alterando.

Mais de cinco mil estudantes em escolas de segundo grau de Jerusalém Oriental estão se preparando para o bagrut, o exame de conclusão de curso israelense que facilita a matrícula em universidades de Israel, ante cerca de mil em 2014, de acordo com a prefeitura de Jerusalém. E 26 escolas de Jerusalém Oriental oferecem o currículo israelense, ainda que em árabe, como opção aos alunos, ante 161 que lecionam apenas o currículo tawhiji da Autoridade Palestina. O número de estudantes palestinos matriculados na Universidade Hebraica de Jerusalém aumentou nos últimos anos. O número de famílias palestinas que solicitam cidadania israelense - um grave tabu por muito tempo - subiu ao recorde de 1.081 em 2016, ante apenas algumas dezenas em 2003.

Mas especialistas de ambos lados dizem que as razões para essas mudanças são muitas vezes práticas, e não necessariamente sinalizam um desejo de adesão à sociedade israelense de parte dos palestinos de Jerusalém Oriental.

"Há uma série crise com relação aos 50 anos de controle israelense, e o avanço insidioso do sistema deles", disse Mahdi Abdul Hadi, diretor da Sociedade Acadêmica Palestina para o Estudo de Questões Internacionais, um instituto de pesquisa independente em Jerusalém Oriental. "Não existe liderança nacional ou agenda nacional. Todo mundo está buscando seu próprio caminho, seja na educação, habitação, questões de terra".

"Sim", ele acrescentou, "algumas pessoas estão solicitando passaportes israelenses como ferramenta de sobrevivência. Mas ninguém tomou suas almas".

Dias depois do show em Jerusalém Ocidental, Jaber e eu estávamos a caminho de sua casa em um beco minúsculo, sob arcos, ao lado de um movimentado mercado do bairro muçulmano, perto do portão de entrada da mesquita de Al-Aqsa. Ele mal havia caminhado três passos quando dois policiais de fronteira israelenses, armados, o pararam e pediram seus documentos.
Jaber não estava fazendo o menor esforço para passar despercebido, com um grande pendente dourado onde se lê "Muzi Raps" preso a uma grossa corrente de ouro, uma camiseta com a imagem de Tupac Shakur, tênis e um boné com os dizeres "erguemo-nos unidos, e bebemos até cair".

Para Israel, a captura da Cidade Velha, com seus lugares sagrados, foi o ponto alto da rápida vitória do país sobre Jordânia e os demais países árabes, em 1967. A área é o núcleo da cidade que Israel decretou como capital eterna e soberana. Mas também é o coração de uma área em conflito, fortemente disputada.

Logo depois da guerra, Israel ampliou muito os limites da cidade de Jerusalém, incorporando a ela cerca de duas dúzias de aldeias da Cisjordânia, e anexou a metade leste da cidade, o que não foi reconhecido internacionalmente.

Israel partiu para a construção de grandes bairros, ou assentamentos, judaicos, por sobre as antigas linhas divisórias, criando uma colcha de retalhos populacional. Os palestinos receberam o status de moradores permanentes, o que lhes confere liberdade de movimento e de trabalho em qualquer parte de Israel, e benefícios sociais semelhantes aos dos cidadãos israelenses.

Hoje, Jerusalém Oriental fica isolada da Cisjordânia por um sistema de muralhas, cercas e postos de controle construído pelos israelenses no começo dos anos 2000, em meio aos atentados suicidas da segunda intifada palestina. E entrevistas com dezenas de moradores palestinos revelam uma sociedade fragmentada e confusa.

Até um terço dos moradores palestinos da cidade vivem em áreas de acomodações baratas, muitas vezes precárias, que são tecnicamente parte de Jerusalém mas que Israel deixou do lado de lá da barreira, em um submundo de futuro ainda mais incerto.

Embora a liderança palestina na Cisjordânia exija um Estado palestino, com Jerusalém Oriental como capital, alguns dos palestinos da cidade descrevem a Autoridade Palestina, que Israel proíbe de operar em Jerusalém Oriental, como uma "máfia" corrupta e sem lei, e muita gente diz que não quer ser governada por ela.

"Temos nossos direitos aqui, onde vivemos", disse Ola Hedra, 35, professora de inglês no bairro de A-Tur, no Monte das Oliveiras. "Não temos tudo - mas é uma vida melhor do que seria sob a Autoridade Palestina".
Os moradores palestinos e israelenses frequentam alguns dos mesmos parques e shopping centers, em Jerusalém Ocidental, e alguns israelenses começam a cruzar a divisa.

Ainda assim, o governo israelense também demonstra alguma ambivalência no seu trato aos moradores palestinos. Nos últimos anos, a proporção de solicitantes de Jerusalém Oriental que conseguiram cidadania israelense caiu acentuadamente. O Ministério do Interior de Israel diz que as verificações de segurança são demoradas, especialmente tendo em vista a sobrecarga de pedidos.

A ambiguidade é mútua. Muhammad Sbeih, 45, dono de uma pet shop no bairro palestino de Beit Hanina, disse que sua carteira de morador permanente de Israel "não me representa", e que quando ele vai a Ramallah, na Cisjordânia, em seu carro com a placa amarela israelense, "as pessoas me tratam como judeu".

Como muitos palestinos de Jerusalém Oriental, ele aprecia muito sua conexão com Al-Aqsa, um dos sítios mais sagrados do islamismo e hoje a essência da identidade de muitos palestinos de Jerusalém. Sbeih serve como muezim em uma mesquita local e disse que gostaria de ver um califado controlando a área.

"Só nos resta o Islã", ele disse.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página:

Links no texto: