Folha de S. Paulo


Busca por um Curdistão independente ingressa em nova fase

Azad Lashkari/Reuters
FILE PHOTO: Iraq's Kurdistan region's President Massoud Barzani gestures during a joint news conference with German Foreign Minister Sigmar Gabriel (not pictured) in Erbil, Iraq April 20, 2017. REUTERS/Azad Lashkari/File Photo ORG XMIT: GGGBAG02
O presidente do Curdistão iraquiano, Massoud Barzani

Para muitos curdos iraquianos, chegou a hora. No começo do mês, Masoud Barzani, presidente do Governo Regional do Curdistão (GRC), no norte do Iraque, anunciou que um referendo de aplicação não compulsória sobre a independência da região será realizado em 25 de setembro.

As autoridades regionais dizem que desejam que os habitantes da área administrada pelo GRC, moradores de territórios há muito disputados (e ricos em petróleo) hoje ocupados por combatentes curdos, e até mesmo membros da diáspora curda espalhados pelo planeta votem sobre a criação de um Curdistão independente.

Para Barzani e seus aliados, é a culminação de décadas tanto de luta quanto de acomodação política. Para o governo central iraquiano em Bagdá, é uma jogada incômoda que pode solapar ainda mais o país, já frágil. E para os vizinhos do Iraque e os Estados Unidos, o referendo só aumenta as dores de cabeça geopolíticas em uma parte do mundo já repleta de conflitos complicados.

Mas a liderança em Irbil, a capital curda no Iraque, insiste em que suas aspirações à independência sejam reconhecidas. Em reunião com um grupo de jornalistas de Washington, Bayan Sami Abdul Rahman, representante especial do GRC nos Estados Unidos, enquadrou a causa curda em termos históricos grandiosos.

"Há mudanças varrendo o Oriente Médio", disse, em referência ao tumulto causado pela guerra civil na Síria, às tensões cada vez mais sérias entre sunitas e xiitas, e à luta regional contra o Estado Islâmico.

Curdos

Ela apontou que, depois da Primeira Guerra Mundial, em meio à desordem política e à redefinição do mapa do Oriente Médio, os curdos ficaram sem país.

"Também aconteceram mudanças cem anos atrás, e os curdos foram espectadores passivos. Não seremos só espectadores agora", afirmou.

Há quase 30 milhões de pessoas de etnia curda vivendo na Turquia, Iraque, Irã e Síria. Só no Iraque os sonhos da etnia quanto à criação de um Estado autônomo estão baseados em poder político real, bem como em uma onda forte de simpatia, se não de apoio claro, vinda do exterior.

Os Estados Unidos e outras potências ocidentais têm elos antigos com o GRC na área de segurança; as unidades de combatentes curdos, conhecidos como "peshmergas", são aliadas vitais do Ocidente nos combates terrestres contra o Estado Islâmico.

Abdul Rahman não demorou a acrescentar que o resultado do referendo não afetaria os movimentos pela independência dos curdos em outros países.

A liderança curda no Iraque não forçou a questão da independência depois da invasão liderada pelos Estados Unidos em 2003. Em 2005, os curdos aceitaram a nova constituição iraquiana, que declarava o país uma república federalista democrática na qual as diferentes comunidades étnicas e religiosas teriam posições iguais no governo.

Mas as crises dos anos subsequentes destruíram qualquer fé que os curdos pudessem ter no projeto federal iraquiano, disse Abdul Rahman.

Ainda assim, mesmo depois que os partidários da independência vencerem o referendo –um resultado amplamente esperado–, ela disse que Irbil não planejava "decretar independência no dia seguinte". Em lugar disso, as autoridades curdas querem iniciar negociações com Bagdá armadas de um mandato eleitoral.

"O objetivo final é um acordo negociado com o governo do Iraque", disse Abdul Rahman.

O governo iraquiano, liderado pelo primeiro-ministro Haider al-Abadi, não está ansioso por debater a ideia.

Abadi insiste em que o momento escolhido para o referendo é inoportuno. Ele disse que tentativas de aplicar o resultado do referendo a territórios disputados, como a cidade de Kirkuk, seriam ilegais –e não está sozinho nessa postura. O segundo maior partido político do Curdistão iraquiano continua até agora se opondo ao referendo, uma posição que reflete a crise política mais ampla na região.

Os aliados dos curdos na região tampouco estão entusiasmados. A União Europeia acautelou contra "medidas unilaterais" da parte de Irbil, e as Nações Unidas se distanciaram de qualquer envolvimento com o referendo. O Departamento de Estado norte-americano declarou que apoiava um "Iraque unido, federativo, estável e democrático", e alertou que o referendo poderia desviar a atenção de "prioridades mais urgentes", como combater o Estado Islâmico.

"Essas atitudes eram esperadas. Queríamos, claro, uma resposta mais positiva", disse Abdul Rahman. "Mas o padrão de outros movimentos de independência demonstra que é isso que podemos esperar. Ninguém quer que fronteiras mudem. Ninguém quer que as coisas mudem".

CURDOS CONTRA O EI

Mas, argumentam Abdul Rahman e seus colegas, mudança é inevitável. Na situação atual, o poder do governo iraquiano não se estende muito ao norte de Mossul, cidade na qual uma sangrenta ofensiva do governo contra o Estado Islâmico continua, com apoio dos peshmergas.

O GRC, abençoado com riqueza petroleira e muitos amigos no exterior, tem posição mais forte que a de outros movimentos de independência. E a história que tem a contar é envolvente: a de um Estado independente que será parceiro forte de Bagdá, aliado da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Oriente Médio, e um pilar de estabilidade em uma região instável. Abdul Rahman disse que o Curdistão adotaria uma forma própria de pluralismo étnico.

"Em lugares como Kirkuk, você pode ser cidadão do Curdistão e ao mesmo tempo assírio, turco ou mesmo árabe", disse Abdul Rahman. "Nem todos são curdos, no Curdistão".

Ela também acredita que seja hora de forçar a independência. O Iraque provavelmente realizará eleições no ano que vem e Abdul Rahman aponta para a ameaça de uma maioria xiita intolerante de volta ao poder em Bagdá. Ela também expressou preocupação sobre a predominância de milícias xiitas com apoio iraniano nas partes do norte do Iraque reivindicadas pelos curdos.

"Reconhecemos que realizar o referendo tem seus riscos", ela disse. "Mas não realizá-lo também tem riscos".

Pode ser que o Oriente Médio não esteja a ponto de receber um novo país, mas Abdul Rahman sugere que o caos do momento representa uma oportunidade de secessão. "Não estamos falando de Quebec. Não estamos falando da Escócia", ela disse, sobre movimentos de secessão derrotados em países ocidentais estáveis. "Estamos falando do Iraque".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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