Folha de S. Paulo


Opinião

Sucessão de tragédias sublinha união e resiliência em Londres

Tolga Akmen/AFP
Meninas participam de vigília em mesquita atacada: 'Não deixe os racistas nos dividirem
Meninas participam de vigília em mesquita atacada: 'Não deixe os racistas nos dividirem'

Sou londrina, nascida e criada aqui. Trabalho numa universidade perto da ponte de Londres e moro a pouca distância da mesquita de Finsbury Park. Meu pai é da região de Manchester, onde vivi quando estudante. Os ataques de fundamentalistas de cada extremo do espectro afetaram minha vida e a de outros moradores de Londres.

No dia seguinte ao atentado na ponte, fui com meu marido (brasileiro) e nossa filhinha até o rio Tâmisa, perto de onde os ataques ocorreram. Depois percorremos o centro de Londres de carro. Não éramos os únicos –a área estava cheia de gente fazendo suas coisas do dia a dia.

Esse é o espírito de Londres: nós nos recusamos a ser dominados pelo medo.

Cresci nos anos 80 e 90, convivendo com a ameaça de bombas do IRA, o Exército Republicano Irlandês. Certa vez fui retirada de um prédio porque a polícia temia que um táxi deixado diante do edifício tivesse uma bomba. Gritaram "corra!", e eu corri sem nem parar para fechar a loja onde trabalhava.

Mais tarde, as coisas voltaram à rotina de sempre.

É o espírito da blitz, resquício da Segunda Guerra, quando Londres sobreviveu a inúmeros bombardeios. É nossa resiliência. Nossa audácia. É de onde vem a frase "keep calm and carry on", "mantenha a calma e siga adiante". E nós mantemos. E seguimos.

Eu e muitos outros londrinos também nos recusamos a ser dominados pelo ódio.

O que faz de Londres grandiosa é sua diversidade, é ser tão multicultural. Mais de cem línguas são faladas na região onde moro. Meus vizinhos vêm de Índia, Polônia, Caribe, África, Reino Unido, Nova Zelândia, Turquia, Itália e Brasil. Nós nos cumprimentamos na rua, ajudamos uns aos outros e nos conhecemos. É isso o que eu sempre adorei em Londres.

O voto pelo "brexit", a saída da União Europeia, intensificou um sentimento de separação. Ele ressaltou a rejeição à imigração em algumas partes do país. Pareceu dividir comunidades e expôs um aspecto desagradável da sociedade britânica.

Mas os atentados aproximaram as diferentes comunidades. O governo conservador perdeu popularidade na recente eleição geral. No último fim de semana, pessoas em todo o país fizeram festas na rua em memória de Jo Cox, a deputada assassinada no ano passado por um terrorista de direita britânico.

A mesquita alvo do ataque de segunda (19) promoveu um evento assim e tem arrecadado levantando fundos para ajudar sobreviventes do incêndio no Grenfell Tower.

Londres está unida. A maior parte dela, pelo menos.

Mas uma divisão muito pior foi sublinhada após o incêndio. Foi quando pais tiveram que decidir entre atirar ou não seus filhos de janelas a 15 metros de altura para tentar salvá-los de morrerem queimados em suas casas.

Foi quando sobreviventes contaram ter tropeçado em cadáveres enquanto tentavam fugir por corredores cheios de fumaça. As portas anti-incêndio se mostraram ineficazes, e não havia sistemas de sprinklers antifogo.

Foi quando, em um dos distritos mais ricos de Londres, gastaram-se quase R$ 42 milhões para reformar o prédio, mas se economizaram os R$ 20 mil que tornariam o revestimento do edifício à prova de fogo. As queixas de moradores de que a torre apresentava risco de incêndio foram ignoradas durante anos.

A divisão real em nossa sociedade foi exposta não como uma divisão racial, mas de classes: um embate entre aqueles com e sem posses; do governo e de empresas privadas que jogam com vidas.

Por isso as pessoas estão também furiosas. Moradores do Grenfell Tower xingaram a primeira-ministra Theresa May de covarde quando ela finalmente foi ao seu encontro, tendo se reunido apenas com os serviços de emergência no dia após o incêndio.

Nesta quarta (21) haverá uma marcha do "Dia de Fúria". Os organizadores ameaçam fechar Londres em resposta ao incêndio do Grenfell Tower e à ira das pessoas por terem passado tempo demais marginalizadas e ignoradas.

A impressão é que o clima está tão inflamável quanto o Grenfell Tower mostrou ser.

Meu consolo, até certo ponto, é o fato de, após o incêndio, as pessoas novamente terem acorrerido em massa para ajudar seus conterrâneos londrinos. Quando tentamos doar roupas e alimentos aos moradores do Grenfell Tower um dia após o incêndio, os centros de atendimento de emergência suspenderam as doações porque estavam inundados de ajuda.

Nesta terça (20), eu e muitos outros fomos à mesquita em Finsbury Park mostrar a seus frequentadores que a comunidade local se solidariza com eles também.

CLARE FLAXEN, londrina, é terapeuta cognitiva

Tradução de CLARA ALLAIN


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