Folha de S. Paulo


'Jornal do ônibus' dribla cerco à imprensa na Venezuela

Luis Robayo/AFP
A jornalista María Gabriela Fernández durante uma apresentação do Bus TV num ônibus de Caracas
A jornalista María Gabriela Fernández durante uma apresentação do Bus TV num ônibus de Caracas

"Bom dia a todos! Começamos com as notícias", anuncia, a bordo de um desengonçado ônibus de Caracas, um grupo de jovens jornalistas que relata, sem o controle oficial, as novidades da crise vivida pela Venezuela em mais de dois meses de protestos.

Agarrando-se nos corrimãos para não cair a cada freada, María Gabriela Fernández e Dereck Blanco se juntam, diante do olhar curioso dos passageiros, atrás de um quadro de papelão preto com um botão vermelho que imita um televisor, com um rótulo em letras azuis: "El Bus TV".

"É preciso quebrar o cerco comunicacional que há no país e levar as notícias verdadeiras a um transporte de massa como o ônibus", explicou à agência de notícias AFP a redatora Claudia Lizardo.

Em três minutos, o Bus TV informa os passageiros –mais habituados com a música alta colocada pelo motorista - sobre segurança, saúde, esportes, espetáculos, além de economia e política –temas indispensáveis em um país com severa escassez e inflação, que vive uma onda de protestos que já deixou 67 mortos.

"Cada bomba de gás lacrimogêneo custa US$ 40 dólares. Pelo câmbio do dólar paralelo, são uns 200 mil bolívares, ou seja, um salário mínimo integral", diz Blanco, ao se referir aos confrontos entre as forças de segurança e os manifestantes oposicionistas, que não são vistos na TV.

Entrando nos ônibus, a jornalista e produtora Laura Castillo negocia com os motoristas. Quase sempre, eles deixam subir sem cobrar a passagem.

"É uma ideia maravilhosa. Gosto quando as coisas são claras, sem violência. Acho muito importante que nos informem sobre o que está acontecendo, para abrirmos os olhos", disse Glenda Guerrero, dona de casa de 68 anos, após ouvir o noticiário atentamente.

Sobem e descem durante a manhã, pegando várias rotas da capital. "Que corajosos!", grita uma mulher. "Estão loucos!", afirma um idoso.

HEGEMONIA

Blanco, apresentador de um telejornal nacional, juntou-se ao Bus TV ao admitir que há "pressões" oficiais que impedem a divulgação de certas notícias.

"É um desafio. O jornalista tem que se reinventar para levar a informação às pessoas".

Fernández, que trabalha em um jornal nacional e usa o ônibus diariamente, também diz que o Bus TV é "uma alternativa necessária".

Com seis jornalistas e artistas, o Bus TV começou em 28 de maio para marcar o décimo aniversário do fechamento da RCTV (Radio Caracas Televisión), que era o canal mais antigo do país e criticava o governo do então presidente Hugo Chávez (1954-2013).

Seu sucessor, Nicolás Maduro –coincidentemente, um ex-motorista de ônibus– acusa parte da imprensa de integrar uma conspiração para derrubá-lo.

Mas a ONG Espaço Público e o Sindicato Nacional dos Jornalistas afirmam que o governo censura os meios de comunicação que lhe são incômodos.

Segundo eles, os chavistas tiraram do ar programas de rádio e a emissora internacional CNN em espanhol, e limitam a entrega de papel (monopólio do Estado) para alguns jornais, visando tirá-los de circulação.

Vários veículos, como o jornal "El Nacional" –o principal do país– e o digital "La Patilla", foram processados. Outros foram comprados por figuras relacionadas ao governo para mudar sua linha editorial, segundo a ONG Espaço Público.

"O governo ganhou a disputa da hegemonia comunicacional. As fontes de informação são as redes sociais, mas nem todos têm acesso a elas, e muita coisa ali é boato. O Bus TV informa o que não sai nos meios tradicionais", afirma Laura Castillo.

A iniciativa está se estendendo, conta a jornalista, e já existem versões da Bus TV nas cidades de Valencia e Puerto la Cruz, adaptados à situação local.

A Venezuela, onde o Sindicato dos Jornalistas registrou 300 agressões a jornalistas durante os protestos, está em 137º lugar entre 180 países no ranking da liberdade de imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteiras.

Luis Robayo/AFP
Jornalistas do Bus TV embarcam em ônibus na capital venezuelana, onde farão a leitura das notícias
Jornalistas do Bus TV embarcam em ônibus na capital venezuelana, onde farão a leitura das notícias

PADARIAS SEM PÃO

"Em economia: um quilo de asinhas de frango custa 9.500 bolívares; o venezuelano que ganha um salário mínimo tem que trabalhar um dia e meio para poder pagá-lo", continuam Blanco e Fernández na leitura das notícias.

Nesse dia, o Bus TV informou sobre o reaparecimento de doenças que estavam erradicadas, a perda de peso de muitos venezuelanos por má alimentação, o histórico sucesso do país no Mundial Sub-20 de futebol e a mensagem de solidariedade do cantor Ricky Martin para a Venezuela.

Em política, continuam, "o presidente Maduro mudará a Constituição de Chávez sem consultar previamente os venezuelanos em um referendo".

"E, enquanto isso, as padarias continuam sem pão", conclui o noticiário, entre aplausos dos passageiros. "Muito obrigado! Esse foi o Bus TV. Continuaremos informando."


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