Folha de S. Paulo


Análise

Confronto de Irã e sauditas ganha contornos agressivos com ação

Mandel Ngan - 21.mai.2017/AFP
O emir do Qatar, xeque Tamim Bin Hamad Al Thani, encontra o presidente dos EUA, Donald Trump, em Riad
O emir do Qatar, xeque Tamim Bin Hamad Al Thani, encontra o presidente dos EUA, Donald Trump, em Riad

Evento extraordinário em si, o bem-sucedido ataque do EI (Estado Islâmico) no Irã ganha dramaticidade extrema se inserido no contexto da disputa entre o país persa e a Arábia Saudita pela hegemonia no Oriente Médio.

Principal centro xiita do mundo, o Irã sempre esteve em oposição ao sunismo personificado no reino saudita. Os sunitas são o ramo majoritário do islamismo, com cerca de 85% dos fiéis da religião no mundo. Divergem doutrinariamente dos xiitas por, entre outras coisas, acreditar numa linha sucessória diferente após a morte do profeta Maomé (570-632).

De caráter religioso, a rivalidade ganhou contornos geopolíticos com a reorganização do Oriente Médio na esteira do desmantelamento do Império Otomano, atual Turquia, nos anos 1920.

Não foram poucos que viram o dedo de Teerã em várias das revoltas sob o guarda-chuva da Primavera Árabe de 2011, com exceção, claro, na Síria –onde a ditadura de Bashar al-Assad é encabeçada pela minoria alauita, que é relacionada aos xiitas e aliada dos iranianos.

A chave para o movimento atual é a mudança de curso na política norte-americana. O Irã havia sido fortalecido pelo acordo nuclear costurado com Barack Obama, com o relaxamento de sanções que asfixiavam sua economia. Com a ascensão de Trump, tudo mudou.

Além da retórica cética sobre o acordo, o republicano reaproximou os EUA da Arábia Saudita. Em uma festejada visita, afirmou laços e levou US$ 110 bilhões de encomendas militares para casa.

Riad estava em apuros. Depois de ajudar os sunitas da ilha do Barhein a controlar uma revolta da maioria xiita em 2012, a Arábia Saudita interveio militarmente contra rebeldes xiita no Iêmen –algo custoso e ineficaz. De quebra, Obama havia se afastado do antigo aliado.

Agora, com o apoio de Trump, liderou um inédito corte de relações dos Estados do Golfo com o Qatar, país que sintetiza a barafunda político-religiosa da região.

O emirado sediado em Doha mantém boas relações com o Irã, com quem divide com o país a maior bacia de gás natural do mundo. Por outro lado, apoia inimigos de Teerã no guerra civil da Síria.

Sede da influente rede de TV Al Jazeera, o país ainda tem proximidade com fundamentalistas da Irmandade Muçulmana, por sua vez rival dos também integristas wahhabistas que dominam a cena religiosa saudita.

Na sequência, o Estado Islâmico atacou o coração do xiismo, Teerã. O EI sempre teve apoio de grupos sauditas, se não da monarquia em si, embora a pressão ocidental para parar tenha surtido algum efeito. Não é por acaso que o Irã acuse sauditas e americanos pelo ataque.

Mas os EUA de Trump teriam no EI, a quem prometeram destruir, um aliado de ocasião? Parece absurdo, mas nada é impossível.

O ponto é que a agressividade retórica está transbordando em violência, e a questão que fica é se Riad e Teerã rumarão para um conflito.
Se sim, a Turquia observa, de olho em retomar a influência que teve na região. Mas o grande novo ator é a Rússia, que após retirar-se da área como União Soviética, voltou intervindo na Síria ao lado de Assad e do Irã. É uma crise com potencial épico.


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