Folha de S. Paulo


Análise

Crise no golfo Pérsico assinala queda do Qatar inconformista

A data era junho de 2013, e o pequeno emirado do Qatar estava flexionando seus músculos diplomáticos em um Oriente Médio que vivia um período de fermentação revolucionária, enquanto aplicava os bilhões faturados com a exportação de gás natural em vistosos investimentos internacionais.

Foi quando o xeque Hamad bin Khalifa Al Thani, o emir do Qatar, lançou uma bomba na ordem política esclerótica do golfo Pérsico ao abdicar em favor de seu filho Tamim, 33. Era a prova definitiva do espírito inconformista do emirado.

Mandel Ngan - 21.mai.2017/AFP
O emir do Qatar, xeque Tamim Bin Hamad Al Thani, encontra o presidente dos EUA, Donald Trump, em Riad
O emir do Qatar, Tamim bin Hamad Al Thani, encontra o presidente dos EUA, Donald Trump, em Riad

Entre os autocratas da região, que em muitos casos viam o emir como nacionalista demais e perigosamente arrogante, a reação foi uma mistura de choque e alívio.

Choque por ele ter rompido com a tradição e exposto de maneira incômoda as demais lideranças envelhecidas que se apegavam ao poder no golfo Pérsico. Alívio porque existia a possibilidade de que o novo e jovem regime se provasse mais fácil de domar.

A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos estavam enraivecidos já há algum tempo com os ventos democráticos da Primavera Árabe que sopravam na região e com o apoio entusiástico do Qatar aos revolucionários, entre os quais integrantes da ala política do islamismo.

Enquanto o Qatar secretamente esperava que as revoluções chegassem ao golfo Pérsico, sob a liderança da Irmandade Muçulmana ressurgida, os líderes sauditas e dos Emirados Árabes estavam determinados a extinguir a chama islâmica muito antes que ela atingisse a região. Depois da abdicação, eles aproveitaram a oportunidade para enquadrar o novo emir qatariano.

A decisão extraordinária dos dois países (acompanhados por alguns outros) de romper relações com Doha, expulsar os qatarianos que vivem em seus territórios e isolar o emirado economicamente é sinal do espetacular fracasso do xeque Tamim e da espetacular teimosia de seus vizinhos.

Os diplomatas dizem que um dos motivos para a crise é que o novo regime qatariano não passa de uma cortina de fumaça. "É o mesmo Qatar, e o pai do emir continua no controle", disse um diplomata veterano recentemente.

Talvez seja esse o caso. Mas o xeque Tamim é filho de seu pai —e também filho da xeica Moza, a glamorosa e igualmente inconformista primeira-dama do emirado. Ele herdou o espírito inovador do casal, e sua propensão a travessuras. Acreditar que ditaria um rumo radicalmente diferente para o país foi sempre uma ilusão.

É verdade que, por algum tempo, o jovem Tamim pareceu ter sido domado. Depois que os sauditas e outros reforçaram a pressão contra ele, em 2014, retirando seus enviados, ele se distanciou dos islâmicos, moderados e extremistas. Mas foi uma retirada tática. Pelo que me informaram, o Qatar é o último país disposto a apoiar grupos vinculados à Al Qaeda na Síria, que no passado recebiam verbas de toda a região.

Acima de tudo, o xeque Tamim parece ter julgado incorretamente a mudança na dinâmica política do golfo Pérsico. Depois que o rei Salman subiu ao trono saudita, em 2015, e conferiu ao seu filho predileto, Mohammed bin Salman, poderes excepcionais, o reino vem se reafirmando vigorosamente como potência dominante na região, e busca isolar seu maior inimigo, o Irã.

A atitude da Arábia Saudita para com o Qatar foi se tornando cada vez mais intolerante, e o apoio incondicional de Donald Trump ao reino —o destino de sua primeira visita oficial ao exterior— aumentou ainda mais a confiança dos sauditas. Por mais incorreta que seja a política de Riad, um soberano prudente do Qatar ainda assim deveria estar em guarda.

O gatilho final para a crise do golfo Pérsico foi provavelmente o resgate de US$ 1 bilhão pago pelo Qatar para libertar um grupo de caçadores de sua família real sequestrados no Iraque. A libertação foi conseguida por meio de pagamentos a uma organização apoiada pelo Irã e a uma organização vinculada à Al Qaeda —o que representa um lembrete escancarado de que Doha está disposta a negociar com os piores inimigos de seus vizinhos.

A escala da punição imposta pela Arábia Saudita —cuja política externa, ironicamente, sempre envolveu pagamentos a oponentes desagradáveis— pode sair pela culatra, forçando o Qatar a um relacionamento mais estreito com o Irã. Por enquanto, porém, o xeque Tamim está encurralado. E os sauditas ainda não chegaram até onde podem.

Os rumores sobre um golpe no Qatar que vêm circulando na mídia saudita talvez sejam apenas a expressão de um desejo, mas são parte de um ataque em múltiplas frentes —diplomáticas, econômicas e psicológicas.

Se a história recente serve como indicador, o xeque Tamim vai primeiro protestar e depois ceder, na esperança de que um novo recuo tático resolva o problema. A ferocidade do mais recente ataque saudita, e o apoio de Trump, sugerem que isso não acontecerá.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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