Folha de S. Paulo


Linha secreta pedida por genro de Trump tem histórico nos EUA

Houve o telefonema ainda misterioso entre Robert F. Kennedy e um correspondente do "Izvestia", na realidade um espião soviético, no dia 1º de dezembro de 1960, assinalando que seu irmão, o presidente eleito Kennedy, queria mudar a natureza do relacionamento dos Estados Unidos com a URSS, seu adversário da Guerra Fria. A ligação não foi exatamente bem-sucedida: primeiro houve a invasão da Baía dos Porcos e depois a crise dos mísseis de Cuba.

Houve o canal secreto de comunicação entre Richard Nixon e o Vietnã do Sul, através de Anna Chennault, eminente levantadora de fundos para o Partido Republicano, que exortou os sul-vietnamitas a rejeitar o esforço do presidente Lyndon Johnson de promover negociações de paz em Paris, alegando que Nixon lhes daria um acordo mais favorável. Cinquenta anos mais tarde os historiadores ainda discutem qual foi o papel direto exercido por Nixon e se, como alegou Lyndon Johnson, sua ação representou uma traição à pátria.

Canais de comunicação secretos durante transições presidenciais não são algo sem precedentes, mas sempre são repletos de complicações possíveis, fato que o presidente Donald Trump e seu genro, Jared Kushner, puderam descobrir nas últimas semanas.

Mandel Ngan/AFP
Jared Kushner e sua mulher, Ivanka Trump, em Washington
Jared Kushner e sua mulher, Ivanka Trump, em Washington

Em última análise, os problemas possíveis dependem inteiramente do teor do que é comunicado. "Um esforço para as duas partes se conhecerem melhor não tem problema algum", disse James R. Clapper Jr., que foi diretor de inteligência nacional no governo do presidente Barack Obama e acionou o alarme quando viu evidências interceptadas sugerindo uma série de contatos entre a equipe de transição de Trump e os russos. O risco, ele disse, aparece quando participar desses contatos viola "a tradição de um presidente a cada vez".

As evidências sugerem que Kennedy provavelmente não ultrapassou os limites do permissível. Nixon, provavelmente sim.

Ainda não se sabe se Kushner, Michael T. Flynn e possivelmente outros membros da equipe de transição de Trump ultrapassaram esses limites do permissível. Talvez a resposta seja diferente para cada um deles. Jared Kushner nunca falou, pelo menos publicamente, sobre o teor de seu encontro com o embaixador russo, Sergey I. Kislyak, ou o de um encontro posterior que teve com um banqueiro russo. Esse segundo encontro já foi descrito de diversas maneiras, desde uma reunião de negócios até uma tentativa de abrir um canal secreto de comunicação com o presidente russo, Vladimir Putin.

Flynn, que seria demitido mais tarde do cargo de assessor de segurança nacional por ter enganado o vice-presidente Mike Pence em relação às discussões sobre as sanções lideradas pelos EUA contra a Rússia, estava evidentemente discutindo questões específicas de política americana. Ainda está em aberto e está sendo investigado se ele estava ou não tentando solapar as sanções impostas à Rússia pela administração Obama.

Uma pergunta fundamental, difundida pelo "Washington Post", é por que se conversou em conduzir discussões futuras através de canais de comunicação russos, que, presume-se, as partes interessadas esperavam que não pudessem ser monitorados pela Agência de Segurança Nacional ou o FBI. Isso parece sugerir a intenção de que o canal de comunicação fosse mantido oculto do governo da época.

"O que não é normal", escreveu Eliot A. Cohen, historiador e ex-funcionário do Departamento de Estado que liderou a oposição a Trump entre funcionários de segurança nacional republicanos no ano passado, "é pedir a um governo hostil que forneça um canal seguro de comunicação para evitar o monitoramento do FBI e NSA."

As investigações terão que determinar se os contatos tiveram intenção espúria ou se foram frutos de um erro cometido por um novato político. "Diferentemente de Jared Kushner, a maioria dos esforços anteriores para usar canais secretos foram feitos por diplomatas experientes", disse na quarta-feira o historiador presidencial Michael Beschloss.

Os canais de comunicação secretos são tão antigos quanto a diplomacia americana. Thomas Jefferson foi um dos primeiros entusiastas desse modo de comunicação. Ele frequentemente contornava seu secretário de Estado, tendo uma vez mandado uma carta secreta ao enviado dos EUA à França, Robert Livingston, contendo uma mensagem codificada.

Foi parte do esforço secreto que conduziu, no ano seguinte, à compra do território do Louisiana. "Pode haver questões que dizem respeito apenas a nós mesmos e que, mais que as de qualquer outra natureza, requerem a proteção de um código", escreveu Jefferson na época.

Jared Kushner pode se animar por saber que Thomas Jefferson chegou a tentar uma abordagem secreta aos russos, avisando que "a missão deve ser do conhecimento do menor número possível de pessoas" e avisando especialmente que ninguém no Senado deveria tomar conhecimento dela –um conselho que parece especialmente relevante hoje, em vista das circunstâncias atuais.

Quase todos os presidentes desde Jefferson já fizeram a mesma coisa, chegando à decisão de Obama de despachar Jake Sullivan e William Burns para tatear a possibilidade de uma abertura com Teerã, algo que deitou as bases do acordo nuclear com o Irã fechado em 2015.

Mas quando se tenta fazer a mesma coisa no meio de uma transição presidencial, há todo tipo de espaço para malfeitos, mal-entendidos e, segundo alguns critérios, atos criminais.

Descrito quase duas décadas atrás por Timothy Naftali e Aleksandr Fursenko em "One Hell of a Gamble", um livro sobre a crise dos mísseis de Cuba, o encontro de Robert F. Kennedy foi ostensivamente com um repórter soviético que era também agente da KGB. Mas, como Naftali escreveu na "Slate" alguns dias atrás, "o encontro com RFK provavelmente aconteceu a pedido dos russos, não dos americanos. Não foi realizado em sigilo -foi anotado no registro de telefonemas de RFK."

Além disso, observou Philip D. Zelikow, historiador na Universidade da Virgínia e ex-integrante da administração de George W. Bush que estudou extensamente a era de Kennedy, a finalidade do encontro foi "assinalar as esperanças de boas relações e adiar as expectativas de um encontro de cúpula imediato".

Segundo ele, a intenção não foi "criar um canal secreto de comunicações para realmente tratar de questões de política. Acho que os irmãos Kennedy estavam realmente obedecendo as regras que não permitem que se faça política externa antes da posse do novo presidente." Toda discussão substantiva sobre Berlim e Laos, observou o historiador, se deu depois de Kennedy tomar posse.

A história dos esforços de Nixon para atrasar as negociações de paz, algo que Nixon sempre negou, ganhou vida nova no início do ano, justamente quando as comunicações da administração Trump com os russos estavam em curso. John A. Farrell encontrou um documento até então desconhecido na Biblioteca Presidencial Richard Nixon em que Nixon mandava H.R. Haldeman, seu assessor mais leal, "atrapalhar" as negociações de paz com o Vietnã. Ele temia que, se Lyndon Johnson avançasse nas negociações, isso pudesse ajudar o vice-presidente Hubert H. Humphrey.

"Sabemos agora que Nixon mentiu", escreveu Farrell no "New York Times" este ano, descrevendo o documento, que ele incluiu em seu livro "Richard Nixon: The Life". O instrumento do esforço para sabotar as negociações de paz foi Anna Chennault, que exacerbou os temores do presidente sul-vietnamita, Nguyen Van Thieu, de que a administração Johnson estaria tão desesperada para fechar um acordo de paz que se disporia a sacrificá-lo.

Johnson cogitou em expor publicamente as ações de Nixon, chegando a encarregar o FBI da tarefa. "Isso é traição à pátria", ele teria dito, segundo fitas gravadas no Salão Oval. Mas não havia provas sólidas.

O que diferencia a investigação atual? A resposta evidente é a interferência russa na eleição presidencial americana.

Em 7 de outubro de 2016, autoridades de inteligência informaram que a Rússia esteve por trás do ciberataque ao Comitê Nacional Democrata. Em dezembro as agências de inteligência já haviam concluído que Putin procurara prejudicar Hillary Clinton, ajudar Trump e desacreditar o processo eleitoral americano. Nenhum desses sinais de algo escuso em ação estiveram presentes nos casos passados de uso de canais de comunicação secretos durante transições presidenciais.

Tradução de CLARA ALLAIN


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