Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Ataque em Cabul sinaliza fracasso dos EUA na 'mais longa guerra'

O horrendo atentado desta quarta-feira (31) em Cabul sinaliza mais um fracasso de Washington naquela que é sua guerra de mais longa duração, e obrigará o governo de Donald Trump a decidir o que fazer com o intervencionismo externo que havia prometido evitar a todo custo.

Isso porque houve uma inflexão na política americana logo de saída, vista por analistas como um contraponto à sucessão de escândalos internos da gestão Trump: nada como uma guerra para distrair o público. Os EUA anunciaram que irão enviar até 5.000 soldados adicionais ao Afeganistão para reforçar o treinamento e, provavelmente, as operações secretas no país em que teoricamente suas tropas de combate foram retiradas em 2014.

A mudança de posicionamento já havia sido insinuada quando os EUA detonaram a "mãe de todas as bombas" sobre um refúgio de combatentes da milícia Estado Islâmico (EI) no sul do Afeganistão, há pouco mais de um mês. Ainda assim, com números limitados, fica a dúvida sobre o quão fundo no atoleiro afegão Trump está disposto a ir.

De todo modo, isso dá uma pista sobre os autores, ainda desconhecidos, do atentado mais recente. Como a principal força insurgente no Afeganistão, o grupo fundamentalista Taleban, negou ter cometido o ataque, todos os olhos se voltam para o EI.

Não que o Taleban não tenha patrocinado ataques semelhantes no passado. Mas o fato é que foi o EI que perdeu quase cem militantes no ataque da superbomba em abril, e o alvo ter sido escolhido na "Zona Verde" de Cabul, o enclave diplomático e governamental no qual só se entra com várias revistas, sugere que a facção esteja por trás do atentado.

Atentado em Cabul, Afeganistão

Além disso, o Taleban vem colhendo vitórias militares convencionais importantes. No fim de março, os guerrilheiros conquistaram posições importantes na Província de Helmand, que fica no sudoeste do país, logo ao lado da base étnica do Taleban, a província de Kandahar.

Os relatos disponíveis são de que as forças afegãs têm perdido terreno contra os talebans, que nunca foram apenas terroristas islâmicos, ainda que cometessem atos de terror. O grupo surgiu nas fronteira do Paquistão nos anos 1990, na esteira da guerra civil que deslocou milhões de afegãos. Formado por membros da etnia pashtun, majoritária no
Afeganistão e importante no oeste paquistanês, o Taleban (o nome do grupo significa "estudantes", pelo recrutamento feito em escolas religiosas islâmicas) é um grupo com intenções territoriais claras.

Em 1996, venceu a guerra civil e ficou até 2001 com controle quase total sobre o Afeganistão. Só que abrigou a cúpula da Al Qaeda, com Osama bin Laden à frente, e a retaliação pelos atentados do 11 de setembro levaram à sua derrubada do poder em Cabul.

Houve uma fragmentação dos subgrupos tribais que o compunham, mas o Taleban sempre permaneceu como força política. Nos últimos dois anos, com a trombeteada saída dos americanos, o avanço militar voltou a acontecer. Mas outros grupos, inicialmente a rede Haqqani (afiliada da Al Qaeda) e agora o EI, estabeleceram-se nas diversas zonas sem lei do país, gerando um desafio adicional aos estrategistas ocidentais.

Não faltam, no Afeganistão, os que defendam a integração do Taleban à vida política nacional como única forma de controlar os grupos mais radicais. Parece ironia, dado o grau de selvageria medieval do regime do Taleban nos anos 1980, mas perto do EI o grupo parece uma força bem moderada. Não por acaso, a Rússia vem estreitando seus contatos com os insurgentes, de olho numa nova composição de forças no sempre atribulado Sul da Ásia.

A bola agora está com os EUA novamente. Dois recados históricos e algo contraditórios os desafiam. Primeiro, o Afeganistão é conhecido como o "cemitério dos impérios" por um bom motivo; nenhum ocupante estrangeiro teve sucesso por lá desde a formação do Estado atual, no século 18. Segundo, quando abandonaram os afegãos à própria sorte após a retirada dos soviéticos invasores em 1989, os EUA viram crescer lá o fanatismo do Taleban e deixaram desempregados vários guerreiros islâmicos, notadamente um certo Bin Laden.


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