Folha de S. Paulo


China lança 'projeto do século' no centro de uma nova ordem econômica

O presidente da China, Xi Jinping, apresentou neste domingo (14) uma visão abrangente de uma nova ordem econômica global, posicionando seu país como alternativa aos EUA voltados para seu próprio interior sob a Presidência de Donald Trump.

Cercado por líderes autocráticos da Rússia e Ásia Central em um fórum em Pequim, Xi prometeu mais de US$ 100 bilhões para bancos de desenvolvimento na China, algo que, segundo disse, será a ponta de lança de gastos enormes com infraestrutura em toda a Ásia, Europa e África. Os líderes das grandes democracias ocidentais se fizeram notar por sua ausência do fórum.

Sem falsa modéstia em relação ao plano, Xi descreveu como "este projeto do século" a iniciativa, conhecida como "One Belt, One Road" (um cinturão, uma rota). Baseado em investimentos liderados pela China em pontes, ferrovias, portos e energia em mais de 60 países, o programa forma a espinha dorsal da agenda econômica e geopolítica da China.

Jason Lee/AFP
O presidente chinês, Xi Jinping, discursa no Fórum Cinturão e Rota, nesta segunda (15), em Pequim
O presidente chinês, Xi Jinping, discursa no Fórum Cinturão e Rota, em Pequim

Em uma virada nova para a China, que normalmente sempre viu com ceticismo os programas sociais do Banco Mundial, Xi disse que a iniciativa vai combater a pobreza nos países que receberão os investimentos. Ele prometeu entregar assistência alimentar emergencial e disse que a China vai começar "cem projetos contra a pobreza", embora não tenha dado detalhes sobre eles.

Xi descreveu o plano como "globalização econômica que é aberta, inclusiva, balanceada e benéfica a todos". Ele disse que a China convidará o Banco Mundial e outras instituições internacionais a unir-se a ela para fazer frente às necessidades dos países em desenvolvimento —e também os desenvolvidos—, sugerindo que estaria procurando abrir mercados novos e exportar o modelo chinês de crescimento liderado pelo Estado.

Xi destacou as diferenças entre o sistema de alianças dos EUA e sua visão do comércio sob a égide chinesa.

"Não temos a intenção de formar um grupinho que desmonte a estabilidade, mas esperamos criar uma grande família de convivência harmoniosa", disse ele, com o presidente russo Vladimir Putin na primeira fileira do centro de convenções onde o discurso foi feito.

Até agora a China gastou apenas US$50 bilhões com a iniciativa que Xi anunciou quatro anos atrás —um valor relativamente pequeno, comparado com seu vasto programa de investimento doméstico.

Mas Xi disse à plateia —composta de mais de duas dúzias de líderes nacionais, enviados de mais de cem países e representantes de várias empresas e instituições financeiras— que estava aumentando os valores disponíveis para os principais bancos chineses de investimentos.

O China Development Bank e o Ex-Im Bank vão conceder créditos de US$ 55 bilhões juntos, e o Fundo da Rota da Seda receberá US$14 bilhões adicionais, segundo Xi. Outros US$50 bilhões serão direcionados para incentivar instituições financeiras a ampliar seus negócios com fundos no exterior em renminbi (moeda chinesa).

O governo chinês planejou o fórum durante meses, lançando uma campanha ampla de divulgação da iniciativa na mídia noticiosa estatal e suprimindo opiniões divergentes de acadêmicos céticos e executivos de estatais preocupados com o gasto de valores muito altos de dinheiro.

Procurando validar o projeto, a China pressionou os países ocidentais e os aliados dos EUA a enviar seus líderes para o fórum, mas a maioria recusou o convite, enviando em seu lugar representantes de escalão mais baixo.

Entre os presentes ao fórum estavam o ministro das Finanças do Reino Unido, Philip Hammond, e Matthew Pottinger, diretor sênior para a Ásia do Conselho Nacional de Segurança dos EUA, de Washington.

Em declarações que fez no fórum, Pottinger exortou a China a exigir transparência nas licitações públicas quando as obras começarem. "A transparência vai garantir que empresas privadas possam participar de licitações em um processo justo e que o custo de participação nas mesmas valerá o investimento", disse.

Pottinger afirmou ainda que empresas americanas estão altamente interessadas em trabalhar nos projetos.

O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, não compareceu, preocupado com a aplicação de valores importantes de dinheiro chinês no Paquistão, país rival. Já o premiê paquistanês, Nawaz Sharif, cujo país é aliado de longa data da China, disse que tem orgulho em estar "lado a lado" com Pequim.

Em comunicado divulgado na véspera do fórum, o governo da Índia disse que a iniciativa corre o risco de gerar dívida insustentável para os países, receio também expresso por alguns economistas ocidentais que estudaram o programa. A China, eles disseram, não pretende dar assistência, mas pedir aos países que contraíam dívidas com bancos chineses para pagar por sua infraestrutura.

Alguns representantes dos EUA e Europa Ocidental dizem que a China está gastando no exterior e levando outros a juntar-se a ela, ao mesmo tempo em que conserva setores importantes de seu enorme mercado doméstico fora do alcance de investidores estrangeiros.

"A abertura da China a empresas estrangeiras ainda é tímida", comentou Joerg Wuttke, ex-diretor da Câmara Europeia de Comércio na China.

Horas antes do discurso previsto de Xi, a Coreia do Norte disparou um míssil balístico de médio alcance.

Alguns representantes interpretaram o lançamento do teste, o primeiro desde a posse do novo presidente da Coreia do Sul, como esforço intencional de causar constrangimento a Xi Jinping.

A mídia chinesa foi instruída a reduzir a cobertura do lançamento do míssil uma hora antes do discurso de Xi, revelaram jornalistas chineses. Então, 30 minutos antes do discurso, as delegações das Coreias do Norte e do Sul tiveram um encontro breve, contou um diplomata sul-coreano que pediu anonimato.

De acordo com o diplomata, o fato de essas duas delegações se encontrarem em reuniões internacionais foi um procedimento bastante normal. Mesmo assim, pareceu simbolizar o interesse da China em organizar discussões sobre a Coreia do Norte entre todas as partes, incluindo os Estados Unidos.

A agência de notícias sul-coreana Yonhap informou que Park Byeong-seok, membro sênior do Partido Democrático da Coreia, disse à delegação norte-coreana que seu governo fez "objeções fortes" ao teste do míssil.

A presença da delegação norte-coreana, liderada por Kim Yong Jae, o ministro das Relações Econômicas, em um evento altamente programado, atraiu críticas da embaixada dos Estados Unidos em Pequim.

O governo Trump pediu à China que exerça pressão sobre a Coreia do Norte, mas não está claro o que a China já fez para reduzir ainda mais seus laços econômicos com Pyongyang.

Um representante do presidente sul-coreano, Moon Jae-in, disse que este enviou Park ao fórum a convite de Xi Jinping.

Os dois líderes teriam conversado ao telefone na quinta-feira, dias após a eleição de Moon, preparando o terreno para uma melhora nas relações tensas entre os dois países.

A expectativa é que Park se reúna com o ex-chanceler chinês Tang Jiazuan em Pequim nesta segunda-feira (15).

As discussões provavelmente vão tratar da oposição chinesa forte ao acionamento do sistema americano de defesa antimísseis, conhecido como Thaad, na Coreia do Sul, e como Moon pretende navegar a corda bamba entre os Estados Unidos, que garante a segurança de seu país, e a China, sua maior parceira comercial.

O Ministério das Relações Exteriores chinês criticou o lançamento do míssil pela Coreia do Norte, dizendo em comunicado à imprensa que violou resoluções do Conselho de Segurança da ONU e pedindo moderação.

Tradução de CLARA ALLAIN


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