Folha de S. Paulo


França frustra interferência de Putin em pleito, mas russos ignoram isso

O tom oficial do Kremlin na segunda-feira (8), um dia depois da eleição do centrista Emmanuel Macron para a Presidência da França, foi de que a Rússia pode trabalhar com qualquer um. Mas a neve que caía em Moscou talvez refletisse mais o frio úmido das relações do Kremlin com a Europa, após mais uma tentativa frustrada de interferir em uma eleição no exterior.

Nos últimos três anos, desde que a Europa impôs sanções à Rússia por causa da crise na Ucrânia, o Kremlin tentou minar e enfraquecer a aliança ocidental transatlântica formada contra ela. As eleições, em particular, eram vistas como momentos ideais para tentar explorar a fraqueza –e a abertura– do Ocidente para ajudar a levar ao poder líderes mais simpáticos à Rússia.

A França foi o último prêmio potencial. Moscou apoiou um candidato perdedor após o outro, incluindo um endosso incomum, muito claro, à líder de extrema-direita pró-Rússia Marine Le Pen, que os eleitores franceses rejeitaram solidamente no domingo (7).

Na segunda, o Kremlin tentou dar a melhor visão possível da eleição de seu adversário. O presidente Vladimir Putin enviou a Macron uma mensagem de congratulações, manifestando a intenção de "superar a desconfiança mútua" e desejando-lhe "boa saúde, bem-estar e sucesso".

Não importa que antes da eleição a mídia estatal russa pintasse Macron como provavelmente gay, servil a banqueiros judeus e entusiasta dos "demônios da globalização".

Mas o lado nacionalista antiglobalização não perdeu todas as esperanças. "Na França a batalha foi perdida, mas não a guerra", escreveu Alexander Dugin, um dos principais filósofos da direita nacionalista que também dá palestras periodicamente na França. "As elites transnacionais (e transgênero) derrotaram o povo."

Fora das fileiras dos acólitos do Kremlin, porém, analistas políticos voltaram suas críticas diretamente para a política externa de Putin, dizendo que era hora de reconhecer que as tentativas russas de influenciar eleições no exterior, inclusive nos EUA, eram um desastre e prejudicavam os interesses russos.

"Mais uma derrota para o Kremlin", escreveu Konstantin von Eggert, um apresentador de programa de TV e analista político no canal independente Dozhd.

No último outono, o Kremlin pensou que tivesse encontrado um aliado natural em François Fillon, um ex-primeiro-ministro conservador escolhido como candidato da centro-direita nas primárias. Caloroso com a Rússia e com Putin, ele pedia o fim das sanções.

Quando um escândalo arruinou suas chances, o Kremlin voltou-se para Marine Le Pen. Ela não fazia segredo de seu amor pela Rússia e até apoiou a anexação da Crimeia. Sua Frente Nacional também recebeu um empréstimo de US$ 11 milhões do hoje defunto Primeiro Banco Tcheco-Russo em Moscou.

Mikhail Klimentyev - 24.mar.2017/Kremlin/Reuters
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, recebeu nesta sexta-feira (24), pela primeira vez no Kremlin, a líder da extrema direita francesa e candidata presidencial Marine Le Pen.
Vladimir Putin recebe a ultranacionalista Marine Le Pen no Kremlin em março

Em março, enquanto declarava sua neutralidade na disputa francesa, Putin hospedou Le Pen no Kremlin, medida incomum para Moscou no meio de uma campanha eleitoral e efetivamente um endosso do Kremlin.

Então surgiram acusações da campanha de Macron de que a Rússia tinha invadido seus computadores. Na véspera da votação, um volume enorme de e-mails de campanha foi roubado e publicado de forma anônima na internet. A lei francesa proibia qualquer comentário sobre eles nos últimos dois dias da campanha, mas a Rússia continua sendo um importante suspeito.

O vazamento não parece ter afetado muita coisa, caindo com um ruído abafado na França. Até o hashtag principal, #MacronLeaks, em inglês e não em francês, cheirava a interferência estrangeira.

Putin, com sua mensagem de valores familiares tradicionais e orgulho nacional, tem algum apoio na Europa, especialmente entre movimentos de extrema direita e populistas como a Frente Nacional ou o Movimento Cinco Estrelas na Itália.

"Em termos franceses, a direita alternativa e a extrema direita superestimaram o efeito que você pode obter através das redes sociais", disse Ben Nimmo, que estuda desinformação e outras iniciativas online para o Conselho Atlântico. "Nem por um instante eu acredito que o jogo terminou e tampouco que a campanha de desinformação russa tenha admitido a derrota."

Depois do resultado, grande parte da cobertura na Rússia se concentrou no fato de que um terço dos votos foram para Le Pen, e sugeriu que a eleição foi de algum modo prejudicada pelo grande número de pessoas que votaram em branco ou não votaram.

Rossiya-24, o principal canal de notícias via satélite da Rússia, ficou repetindo que Le Pen alcançou um "resultado fenomenal". Seu partido teve a melhor votação de todos os tempos, mas mesmo assim muito abaixo do limite que seus assessores disseram que considerariam um sucesso.

A agência de imprensa do governo russo Sputnik publicou uma reportagem em seu serviço francês enfatizando que Le Pen provavelmente sairia vitoriosa em dois distritos eleitorais. O fato de que Macron levaria os outros 99 só aparecia no quarto parágrafo.

"A derrota vitoriosa de Marine Le Pen", dizia uma manchete no serviço francês da RT, o canal internacional de TV do Kremlin.

Em outros veículos da mídia russa houve algumas análises diretas das perspectivas de Macron, incluindo seu desejo de reforçar a União Europeia e instituir amplas reformas econômicas.

Na outra ponta do espectro estavam os que diziam que Putin não apenas falhou em eleger uma candidata simpática à Rússia como, do mesmo modo que nos EUA e em outros lugares, estava efetivamente virando os políticos e o público contra a Rússia.

"Macron era o candidato mais anti-Kremlin", disse Von Eggert em uma entrevista.

Assim como Angela Merkel, a chancelar alemã, Macron essencialmente vê Moscou como um problema, mais que um parceiro, disse o analista, e as recentes iniciativas de política externa de Moscou, desde a interferência nas campanhas ao envio de militares à Síria, trouxeram pouca substância positiva para a Rússia.

"Quando se trata de mudança de políticas a favor do Kremlin, não vimos muita coisa", disse Von Eggert.

A campanha de Macron ficou tão irritada com o teor das reportagens dos canais russos Sputnik e RT que os barrou em alguns eventos, provocando protestos de Moscou.

Macron, em seu debate com Le Pen pouco antes da votação, prometeu assumir uma linha mais dura com Putin. Enquanto admitia que a Rússia precisava estar à mesa para ajudar a solucionar problemas como as guerras na Ucrânia e na Síria, ele salientou que seus valores são diferentes.

"De modo nenhum me submeterei às ordens de Putin", disse Macron. "Ele será um parceiro de trabalho em diversas questões regionais, alguém com quem falarei, mas com a consciência de que em muitas questões não temos os mesmos valores ou as mesmas prioridades."

DISTRIBUIÇÃO DOS VOTOSMacron foi derrotado por Le Pen no norte e no sudeste da França

Traduzido por LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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