Folha de S. Paulo


Fronteira entre as Coreias tem cenário bucólico e 'sumiço' de soldados

O cenário é bucólico: silêncio, montanhas, árvores.

Não parece fazer parte de uma região que já foi chamada pelo ex-presidente dos EUA Bill Clinton como "a mais assustadora da terra".

Também não parece refletir a tensão recente da península coreana, com discursos que indicam a possibilidade de um novo conflito.

Alencar Izidoro/Folhapress
Funcionario do Ministerio da Defesa da Coreia do Sul observa vista da Coreia do Norte
Funcionario do Ministerio da Defesa da Coreia do Sul observa vista da Coreia do Norte

E não há sinais de que, quatro horas antes, Mike Pence, vice-presidente do EUA, havia passado bem perto, em outro trecho da zona desmilitarizada —um tipo de faixa de segurança estabelecida desde 1953 para separar os limites entre as repúblicas coreanas e que ocupa 2 km de largura de cada país, ao longo de quase 250 km da divisa.

Na tarde desta segunda-feira (17), a Folha viajou à fronteira, no ponto mais próximo das Coreias do Sul e do Norte, países que vivem um momento de apreensão após a troca de ameaças entre Pyongyang e Donald Trump, presidente americano e aliado dos sul-coreanos.

Editoria de Arte/Folhapress

A reportagem esteve acompanhada de K., 43, funcionário do Ministério da Defesa da Coreia do Sul que pede para ter sua identidade preservada, e do motorista Kim Yoon-seok, 57. Foi vigiada por um soldado, encarregado de monitorar todos os deslocamentos em um carro separado.

No observatório de Dora, Kaesong, onde funciona um complexo industrial, é a cidade da Coreia do Norte que se avista mais próxima, com binóculos, a partir do lado sul-coreano. Uma bandeira vermelha hasteada logo após a linha divisória exalta que ali já é parte do regime comunista. Desta vez, não se vê nenhum soldado norte-coreano por perto, apesar do agravamento da tensão entre os dois países nos últimos dias.

"Geralmente tem pelo menos cinco homens aqui, é uma área marcada por provocações. Hoje está vazio", diz K., que chega a estranhar a ausência, ainda que temporária, num momento de recente tensão.

Mesmo no lado da Coreia do Sul há poucos militares nesse pedaço da fronteira, considerada uma das mais vigiadas do mundo. Em duas horas e meia de permanência com deslocamentos pela região de acesso restrito, a Folha viu entre 20 e 30 homens.

Mais cedo, Mike Pence chegou a ser observado por dois militares norte-coreanos (e filmado por um deles) durante a visita a Panmunjeom, em trecho vizinho, na zona desmilitarizada.

Alencar Izidoro/Folhapress
Prédio do observatório sul-coreano ao lado da zona desmilitarizada, de onde se vê a Coreia do Norte
Prédio do observatório sul-coreano ao lado da zona desmilitarizada, de onde se vê a Coreia do Norte

ACESSO CONTROLADO

"Claro que há sempre tensão, mas não se preocupe, às vezes é mais para conseguir entrar", diz Kim, antes de guiar a reportagem na viagem de uma hora a partir de Seul.

O acesso rigidamente controlado é a característica que mais aproxima esse trecho da fronteira de um ambiente sob ameaça de guerra.

De modo geral, um jornalista precisa obter autorização com duas semanas de antecedência para visitar e fazer imagens. No caso de turistas, com acesso a pontos específicos, 72 horas —e esse tipo de visita não é feito às segundas-feiras.

Na barreira militar que controla a passagem para a área de acesso restrito para civis, a reportagem é retida por 15 minutos pelos militares de uniforme verde e bandeira sul-coreana no braço, apesar da presença do representante do Ministério da Defesa. O passaporte ficará por lá até a saída.

O soldado destacado para monitorar a visita alerta para a proibição de alguns tipos de foto —como a dos próprios militares sul-coreanos.

Alencar Izidoro/Folhapress
Bandeiras e fitas com referência à divisão das Coreias, fora da área de acesso controlado da DMZ
Bandeiras e fitas com referência à divisão das Coreias, fora da área de acesso controlado da DMZ

ZONA HOSTIL

Esse trecho da fronteira fica a cerca de 60 km de Seul e a pouco mais de 200 km de Pyongyang, capital norte-coreana.

Conhecida como DMZ (sigla em inglês), a zona desmilitarizada, que se estende por toda a divisa e é resultado do armistício após a guerra de 1950-53, tem um histórico de provocações e incidentes.

Em 2014, tropas dos dois países trocaram tiros duas vezes no mesmo mês devido à suposta aproximação de uma das partes da linha de demarcação.

Em 2015, a Coreia do Sul retomou uma guerra de propaganda na fronteira, com uso de alto-falantes, após um ataque com minas terrestres que feriu dois soldados do país.

Do lado oposto, Pyongyang começou a transmitir propaganda a favor do regime em seus alto-falantes, recurso usado há décadas pelas duas partes.

O ambiente hostil já incluiu mortes e a descoberta de túneis que seriam usados para espionagem pelo regime comunista.

FABRICADO

Na área de acesso restrito e controlado próximo à fronteira, fora da zona desmilitarizada, há um vilarejo onde moram em torno de 60 famílias —mais de 200 moradores.

Com isenção de taxas governamentais, sobrevivem da agricultura e da exploração turística de pontos onde visitantes se aproximam —e encontram também cenários fabricados para isso.

Perto das casas onde vivem esses habitantes, uma cerca de arame farpado separa uma parte do terreno. "É só simbólico", explica K., já que ali não haveria nada a ser isolado (e só num pequeno trecho de dez metros).

Um prédio administrativo, correspondente à prefeitura do vilarejo, exibe no teto uma sequência de alto-falantes. Nesse caso, diz K, há utilidade —seja para dar avisos a moradores sobre informações corriqueiras seja para eventuais alertas em situação de emergência, como na eventualidade de conflito na fronteira.

Com sete anos de trabalho no Ministério da Defesa e após ter servido cinco anos nas Forças Armadas sul-coreanas, K. diz acreditar que as recentes ameaças não passam de retórica da vizinha Coreia do Norte para fortalecer seu regime internamente.

Ele conduz a reportagem em direção à saída da área de controle, onde ocorre a devolução do passaporte.

Pai de dois filhos, de 11 e 6 anos, ele conta, após a visita, a conversa que teve no último final de semana com seu "menino mais velho", que havia assistido ao noticiário na TV.

"Ele me procurou para perguntar: 'pai, a guerra vai começar?' Respondi a verdade que acredito mesmo: 'Não filho, pode se acalmar.´"


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