Folha de S. Paulo


Na capital síria, evento de moda reúne peças inspiradas no conflito

Yan Boechat/Folhapress
Plateia composta em sua maioria por mulheres damascena assiste aos desfiles da Damasco Fashion Week, o primeiro festival de moda na capital sv?ria desde o comevßo da guerra civil no Pais.(Foto: Yan Boechat/Folhapress)
Plateia acompanha desfiles do Damasco Fashion Week, na Síria

O olhar circunspecto do líder sírio Bashar al-Assad e de seu pai e antecessor, Hafez al-Assad, não intimidam as mulheres vestidas apenas com calçolas, sutiãs e roupas com decotes generosos para um país com mais de 70% da população muçulmana sunita.

A desenvoltura com que trocam de vestidos e se maquiam na pequena saleta enfumaçada contrasta com a plateia que aguarda ansiosa.

Logo uma espécie de frenesi toma conta de tudo. As mulheres correm, os cabeleireiros fazem os últimos retoques e despejam quantidades intoxicantes de laquê.

Um estilista passa com as mãos na cabeça, nervoso, quase aos prantos. Ao que parece um dos vestidos não ficou bem na modelo que lhe ofereceram. A maquiadora tenta consolá-lo, mas já não há mais tempo.

Lá fora as luzes se apagam, a música eletrônica cessa e um locutor avisa: vai começar a Damasco Fashion Week, a primeira semana de moda da capital síria desde que a guerra civil que destruiu metade do país teve início, há seis anos. Bashar e Hafez continuam impassíveis, estáticos nos quadros de moldura dourada que ornam a saleta.

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Plateia composta em sua maioria por mulheres damascena assiste aos desfiles da Damasco Fashion Week, o primeiro festival de moda na capital s'ria desde o comeo da guerra civil no Pa's. Foto: Yan Boechat
Modelo desfila no Damasco Fashion Week, na capital da Síria

A plateia não grita, não fala, quase não faz barulho. São dezenas de mulheres bem vestidas, muitas usando o hijab, o véu que lhes cobre a cabeça por completo que muitos veem no ocidente como o símbolo da opressão feminina no Oriente Médio.

Estão sentadas nas cadeiras enfileiradas nas laterais do palco. Alguns homens as acompanham. Os olhos estão vidrados nas colunas romanas decoradas com detalhes em dourado. É dali que as modelos sairão.

Quando a ex-atriz Riba Zena surge com uma saia preta e uma camisa de renda transparente, deixando à mostra o sutiã também negro, os celulares surgem. Um mar deles sobre as cabeças da plateia. Estão todos filmando, fotografando e até enviando vídeos ao vivo via redes sociais.

"As pessoas querem registrar, mostrar aos amigos que nós também temos isso, que estamos vivos. Há orgulho em todos por estar aqui hoje, é uma forma de resistência", diz Maher al Moukajer, dono da principal escola de moda de Damasco, que pede para ser chamado de "doutor".

PARTICIPAÇÃO PAGA

Moukajer nunca fez faculdade, mas insiste que uma franquia do Instituto Europeu de Design lhe deu o título por seus vastos conhecimentos na arte de criar roupas.

Sua escola é representada por seis dos nove estilistas que apresentaram suas criações na Damasco Fashion Week. Quase todos eles jovens, alguns nem formados, que aceitaram desembolsar uma quantia não revelada para estar no evento.

"A antiga geração se foi, esta é uma profissão em que se consegue emprego em qualquer lugar do mundo. Quem trabalhava com moda antes da guerra não está mais aqui, agora é que está surgindo a nova geração", diz ele, cumprimentado a todo instante por alunos, pai de alunos e amigos dos alunos.

"Ele é uma celebridade aqui", diz Nidal Haydar, estilista de noivas e um dos poucos da velha guarda que permanece em Damasco.

A cena fashion damascena é dominada agora por gente como Lena Abdul Latif, uma garota de 18 anos.

No domingo passado (9), Lena estava radiante. Havia vendido dois vestidos de festa que apresentará na véspera na DFW. "Foi um grande reconhecimento, quero ser uma estilista internacional, uma artista", diz.

Lena não guarda semelhança com o visual ousado de estilistas jovens mundo afora. Veste-se de maneira simples e conservadora.

No domingo, usava uma calça e um colete brancos, uma blusa azul e um hijab também branco. Como quase todos de sua idade, ela passou a adolescência na guerra. A estilista conta que tudo de ruim que lhe aconteceu nos últimos anos ela procura transformar em roupa.

"Outro dia um morteiro caiu muito perto de mim, fiquei muito assustada. Mas, quando cheguei em casa, desenhei um vestido preto me lembrando da fumaça. Outra peça que fiz foi inspirada em um prédio em ruínas perto da minha casa, que foi atingido por um míssil. Fiz um vestido vermelho, recortado", conta ela, que sonha em ir à Itália.

O salão de moda movimentou o Dama Rose, quase sempre palco de enfadonhas reuniões entre diplomatas, autoridades e gente que ainda faz negócios na Síria. A quilômetros dali, já se ouve o som dos morteiros disparados pelos rebeldes salafistas contra os bairros próximos à periferia de Damasco.


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