Folha de S. Paulo


Inflação pulveriza dinheiro na Venezuela

A mesa parece a de uma apreensão de uma boca de fumo ou a de um milionário exibicionista, como o boxeador Floyd Mayweather. São 1.700 notas, atadas em bolos de cem ou 200 cédulas.

A quantia representa 170 mil bolívares venezuelanos, parte dos 300 mil obtidos pelo repórter da Folha depois de converter US$ 100 (R$ 315) com um carregador de malas no aeroporto de Caracas.

Marco Bello-21.mar.17/Reuters
A worker counts Venezuelan bolivar notes at a gas station of Venezuelan state oil company PDVSA in Caracas, Venezuela March 21, 2017. REUTERS/Marco Bello ORG XMIT: GGGMAB107
Venezuelano conta dinheiro em posto de gasolina em Caracas

Os restantes 130 mil foram entregues em notas de 10 mil, que circulam desde janeiro. Se a conversão fosse feita até dezembro passado, seriam mais 1.300 cédulas.

O bolívar é a cara mais visível da inflação na Venezuela. A alta de preços, de 25% ao ano sob Hugo Chávez (1954-2013), se acentuou com Nicolás Maduro e hoje se aproxima de 500%.

Desde 2013, quando o pai da Revolução Bolivariana morreu e o afilhado assumiu o poder, o índice de preços ao consumidor avançou 4.257%, ao mesmo tempo em que o PIB encolheu 17%.

Neste período, o país passou a sofrer com o desabastecimento e viu se reverter a redução da pobreza sob Chávez. De 27,2%, a parcela de pobres subiu para 81,8%.

A queda brusca dos preços do petróleo, que perfaz 90% das exportações, é apontada pelo governo como a razão da crise, que Maduro atribui a uma "guerra econômica".

No entanto, para Boris Ackerman, professor convidado da Universidade Rei Juan Carlos de Madri, o petróleo foi o estopim de uma situação gestada pelo chavismo.

"A crise ocorreu pela irresponsabilidade fiscal, pela péssima gestão dos recursos das exportações, a inoperância das empresas estatais, as expropriações, a corrupção e a absoluta desarticulação na economia do país", afirma.

O economista diz que os preços regulados, o controle do câmbio, as leis trabalhistas e o controle do movimento de mercadorias pesam sobre a escassez de produtos.

A ameaça de expropriação é apontada como um dos motivos para a fuga dos investimentos privados. Sem contrapartida estatal, recorreu-se à importação e, sem dinheiro, veio o desabastecimento.

COTAÇÕES DO DÓLAR - Em bolívares

ABISMO

A diferença entre preços regulados e liberados chega ao múltiplo de dez. Enquanto o bilhete do metrô de Caracas custa 4 bolívares, os ônibus, geridos por cooperativas, são 150 bolívares. Mesmo assim, andar de metrô pode sair mais caro que de moto ou carro, dependendo da distância -por 6 bolívares compra-se um litro de gasolina.

Ackerman afirma que só com a liberação do comércio e do câmbio será possível resolver a escassez: "Enquanto isso se mantiver, serão as pessoas próximas ao governo que continuarão aproveitando as regulações".

É o que acontece no principal programa estatal para reduzir o desabastecimento, o Clap (Comitês Locais de Abastecimento e Produção), usado pelo governo desde o ano passado para distribuir alimentos e remédios.

A iniciativa é controlada pelas Forças Armadas e pelos coletivos (milícias armadas chavistas), e os beneficiados são moradores de regiões aliadas a Maduro.

Folha Explica a crise econômica na Venezuela

O governo promete tirar as notas menores de circulação, e a nova família de bolívares, com cédulas de até 20 mil, chega aos poucos às ruas.

Numa corrida de táxi de 5.000 bolívares em Caracas, o repórter entregou uma nota de 10 mil e recebeu de volta 50 cédulas de 100 bolívares. Na cidade mais violenta das Américas, com 138 homicídios para cada 100 mil habitantes (São Paulo tem 9), andar com maços de dinheiro não significa necessariamente um risco de assalto.

INFLAÇÃO (em %) - Moeda venezuelana perdeu mais de 135 vezes seu valor em nove anos


Endereço da página:

Links no texto: