Folha de S. Paulo


Bombas não protegerão civis na Síria, diz expert em crimes de guerra

Se o objetivo principal do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, é proteger civis na Síria, um "ataque limitado a uma base aérea, como o de sexta-feira (7), não será suficiente. O próximo passo lógico é o estabelecimento de uma área segura no país. Mas, para isso, será necessária a mobilização de muitas tropas americanas -o que aumenta o risco de os EUA serem tragados para dentro do conflito sírio.

Esse é o alerta de Stephen Rapp, 68, que foi embaixador dos EUA para crimes de guerra e justiça global e ajudou a recolher provas sobre violações cometidas pelo ditador sírio, Bashar al-Assad.

"O maior risco é repetirmos o que houve no Iraque, onde, para manter nossa credibilidade diante de seguidas violações, fomos aumentando nosso envolvimento na guerra", diz Rapp, que também foi promotor do Tribunal Internacional que julgou os crimes cometidos durante o genocídio em Ruanda e do Tribunal Internacional para a guerra em Serra Leoa.

Yan Boechat/Folhapress
Siria 07.04.2017 Cidade antiga de Homs, completamente destruida durante as batalhas entre as forcas do governo Sirio e os rebeldes. Toda a area esta abandonada e nao ha mais moradores ali. Esses edificios nao foram destruidos pelos misseis americanos. Foto: Yan Boechat/Folhapress ****EXCLUSIVO FOLHA NAO UTILIZAR SEM AUTORIZACAO****
Cidade antiga de Homs, destruída durante as batalhas entre as forcas do governo sírio e os rebeldes

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Folha - A decisão de atacar uma base aérea do governo sírio foi acertada?

Stephen Rapp - Em situações em que crimes de guerra são cometidos, às vezes são necessárias ações militares limitadas para alcançar a paz.

Na guerra da Bósnia, havia tropas de manutenção de paz, mas elas não conseguiram proteger os civis, que foram alvo de limpeza étnica dos sérvios. Ataques da Otan (aliança militar ocidental), juntamente com ofensiva dos Exércitos bósnio e croata, criaram uma situação que possibilitou a negociação de paz.

Em 1999, houve limpeza étnica no Kosovo e a Otan bombardeou o Kosovo e a Sérvia, o que levou à retirada sérvia. Foi uma operação que não passou pelo Conselho de Segurança da ONU, porque seria bloqueada pelos russos. Então foi tecnicamente ilegal, mas foi legítimo.

A mesma ideia de ilegal, porem legítimo, pode se aplicar ao ataque de Trump.

Do ponto de vista legal, seria necessário ter uma investigação independente e depois passar pelo Conselho de segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) para uma resolução.

Mas, no passado, esse caminho se mostrou infrutífero. O ataque do regime com gás sarin em Ghouta, em 2013, provocou a morte de 1.400 pessoas. Depois disso, a Síria se tornou membro da OPCW (Organização para a Proibição de Armas Químicas), admitiu ter armas químicas e se comprometeu a entregar seu estoque à organização.

No ano passado, uma investigação da OPCW mostrou que o governo sírio tinha usado gás cloro em ataques posteriores. Mesmo assim, todos os esforços para impor sanções contra a Síria foram bloqueados pela Rússia no Conselho de Segurança da ONU.

Então é compreensível a decisão de Trump, pois não havia alternativa prática.

Folhapress
CONFLITO NA SÍRIAControle territorial do país está fragmentado após seis anos de guerra
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Existem provas de que o governo de Assad foi o autor dos ataques com armas químicas que levaram à morte de pelo menos 80 pessoas?

Eu conversei com testemunhas, entre elas um médico que estava lá durante o ataque e atendeu cerca de 80 pessoas. Não há dúvidas de que se trata de gás sarin, exatamente do mesmo tipo do que foi usado em Ghouta.

Autoridades sírias e russas afirmam que houve um bombardeio acidental de um depósito da oposição onde estavam armazenadas armas químicas...

Bom, nem o Estado Islâmico nem a oposição têm aviões ou caças, só os sírios e os russos. E ninguém contesta, nem o regime sírio, que eram aviões sírios. Testemunhas no local afirmam que havia buracos de bombas na rua. Outros testemunhos mostram que a versão do regime sírio não é verossímil.

Podemos esperar que os crimes da guerra da Síria sejam julgados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI)?

Eu continuo reunindo provas para levar os crimes de guerra da Síria para um julgamento no TPI. Esses casos levam anos até chegarem a julgamento, mas mandam uma mensagem para aqueles que cometem esses crimes, de que eles serão responsabilizados.

Mas a Síria não é signatária do estatuto de Roma, que criou o TPI. Então, para que os crimes da guerra na Síria sejam julgados pelo TPI, seria necessária uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. Como já ocorreu em maio de 2014, essa resolução provavelmente seria bloqueada pela Rússia e China.

O senhor acha que foi um erro a decisão do presidente Barack Obama de não intervir militarmente na Síria em 2013, apesar de Assad ter "cruzado a linha vermelha" e usado armas químicas em Ghouta?

Essa é uma questão muito controversa. A oposição síria se sentiu abandonada, porque os EUA não fizeram uma intervenção militar. Ao mesmo tempo, o governo Obama fez uma negociação com o regime sírio que levou à retirada de pelo menos 90% dos estoques de armas químicas do país.

Foi um grande esforço para impedir esses crimes sem recorrer à força. Eu acho que o presidente Obama ajudou a melhorar a situação.

Os bombardeios americanos de sexta-feira (7) terão poder de dissuasão, serão suficientes para que Assad deixe de atacar civis com armas químicas, ou serão necessárias mais ações militares?

É importante dizer que se tratou de um ataque restrito, simbólico, que teve pouco efeito prático. O ataque manda uma mensagem de que violações terão consequências. Poderia ter algum efeito de impedir que o regime sírio usasse essas armas de novo.

Mas dado que 500 mil pessoas já morreram nessa guerra, que o regime ataca hospitais e trabalhadores humanitários e que milhares são torturados, achar que um ataque vai mudar o comportamento de Assad é o triunfo da esperança sobre a experiência.

Integrantes da oposição síria com quem eu tenho contato querem que sejam estabelecidas zonas seguras onde eles possam se abrigar. Mas para criar as zonas seguras e mantê-las, serão necessárias mais ações militares. Outra preocupação é a possibilidade de essas zonas seguras se transformarem em santuários para terroristas do Estado Islâmico e da Al Qaeda.

Quem vai impedir que isso ocorra? Criar zonas seguras vai requerer o envio de um número substancial de tropas para garantir que essas áreas serão realmente seguras. A área segura pressupõe uma zona de exclusão aérea, ou seja, qualquer avião sobrevoando a região será abatido. Para isso, é preciso que Rússia e EUA voltem a coordenar suas ações de alguma maneira.

Como evitar que nós acabemos com uma nova Líbia, onde a ONU autorizou medidas para proteção de civis, mas o que houve foi a derrubada do ditador Muammar Gaddafi e a geração de uma instabilidade que perdura até hoje?

A principal queixa em relação à intervenção na Líbia foi que os países distorceram o mandato que receberam da ONU. Em vez de apenas proteger civis, eles derrubaram o presidente. Na Síria, a negociação não necessariamente deve incluir mudança no regime. O principal seria proteger civis e prever um processo para que o povo sírio escolha seu governo. Mas isso pode ser difícil, considerando que se trata de um líder envolvido em crimes hediondos.

É possível ter uma intervenção militar que não acabe em mudança de regime?

Um plano que preveja áreas autônomas dentro da Síria, em que o governo central cuide apenas de relações exteriores e Justiça, por exemplo, seria uma boa linha de negociação. Eu acho que isso é mais realista do que achar que haverá vitória e que alguém vai controlar o país todo. Seja qual for a negociação, sabemos que, se houver uma paz na Síria, ela será parcial, porque ainda existirá o Estado Islâmico e outros extremistas.

Do ponto de vista da política externa americana, qual é o maior risco?

O maior risco é repetirmos o que houve no Iraque, onde, para manter nossa credibilidade diante de seguidas violações, fomos aumentando nosso envolvimento na guerra mais e mais. Essa é a pior das opções. Um grande envolvimento dos EUA aumentará a capacidade do regime sírio de arrumar apoiadores para sua causa, que se transformará em uma luta contra os EUA. Por isso seria muito melhor ter uma abordagem multilateral.


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