Folha de S. Paulo


Análise

O genocídio sírio agora é problema de Donald Trump

Bashar Assad e Vladimir Putin são responsáveis pela guerra genocida na Síria, que inclui o aparente uso de ataques químicos contra inocentes. Os dois são de fato criminosos de guerra, sob qualquer que seja a definição do termo, entre outras coisas por terem deliberadamente tomado civis e trabalhadores de organizações assistenciais como alvos.

O presidente Barack Obama e seus assessores, que invocaram desculpa atrás de desculpa para evitar agir, terão em seus históricos uma mácula vergonhosa e permanente. A responsabilidade cabe tanto aos republicanos quanto aos democratas que se se opuseram ao uso da força para a defesa da "linha vermelha", e com isso facilitaram a vacilação de Obama.

Yuri Gripas/Reuters
Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o rei Abdullah, da Jordânia, em entrevista conjunta à imprensa em Washington
O presidente dos EUA, Donald Trump, e o rei Abdullah, da Jordânia, em entrevista à imprensa

Todo mundo está incluído na lista, do senador Marco Rubio, republicano da Flórida, ao senador Rand Paul, republicano do Kentucky, passando pelos democratas progressistas. Além deles, candidatos à presidência como Donald Trump e o senador Ted Cruz, republicano do Texas, que estimularam os isolacionistas e pressionaram para que não nos opuséssemos a Assad, tampouco estão isentos de culpa.

No entanto, Trump agora é o comandante em chefe. Ele deve decidir se manteremos nossa abordagem passiva e continuaremos a assistir ao genocídio em curso ou se seguiremos um novo caminho. Eliot Cohen, crítico frequente de Trump, recorreu ao Twitter para dizer que "lamúrias são uma resposta covarde e contraproducente".

As declarações iniciais de Trump, refletindo falta de preocupação sobre a Síria, estão mais para covardia. (Francamente, as declarações do secretário de Estado Rex Tillerson e da embaixadora norte-americana à ONU, Nikki Haley, de que a política dos Estados Unidos já não é remover Assad do poder podem ter solidificado o cálculo do líder sírio de que seria possível agir com impunidade.)

Eric Edelman, antigo embaixador dos Estados Unidos à Turquia, me disse que "pelo menos até agora a política de Trump quanto à Síria parece uma continuação da política de Obama. Isso pode refletir o fato de que, depois de permitirmos a carnificina, por assim dizer, durante seis anos, as escolhas que restam ao governo variam de ruins a catastróficas, mas permitir que a situação atual prossiga interminavelmente não vai funcionar".

Ele acrescenta que "a situação não só é horrível em termos humanitários mas vem gerando uma catástrofe migratória que está avassalando a Europa. Não parece ser acidente que o ataque tenha acontecido depois de o governo sinalizar que era possível viver com Assad, o que, de novo, é mais ou menos a continuação da política de Obama".

Outros críticos da abordagem passiva para com a Síria acreditam que ainda exista oportunidade de corrigir o curso. Apontando para declarações mais firmes do governo, que deplorou a carnificina, o antigo assessor de segurança nacional da Casa Branca Elliott Abrams (cuja indicação ao posto de secretário assistente de Estado no governo Trump teria sido aparentemente vetada por Stephen Bannon) disse: "A questão é o que virá a seguir. Há opções, a começar por ataques militares que restrinjam a capacidade bélica de Assad e que quase certamente o convenceriam a nunca mais usar armas químicas".

Abrams explica que "o governo foi apanhado em uma armadilha, agora. À medida que as ações de Assad pioram e pioram, nossa retórica endurece, o que é correto –mas faz com que a inação pareça menos e menos defensável". Ele sugere que "mesmo um ataque muito limitado, como aqueles que Obama imaginou realizar (e dos quais ele desistiu mais tarde), conquistaria apoio generalizado e seria uma mensagem forte a Putin [e ao presidente chinês Xi Jinping] de que o presidente será um adversário duro".

De fato, em entrevista coletiva na tarde de quarta-feira, Trump afirmou que o novo ataque químico o levou a mudar de ideia. "Vou lhes dizer que o ataque contra crianças ontem teve grande impacto sobre mim", Trump declarou. "Foi uma coisa horrível, horrível. Assisti ao acontecido, prestei atenção, e não há coisa pior. Tenho essa flexibilidade. E é muito possível que eu lhes diga que isso já aconteceu, minha atitude com relação à Síria e Assad já mudou muito".

Ammar Abdullah/Reuters
Homem é tratado com oxigênio após ataque com gás na cidade de Khan Sheikhoun, na Síria
Homem é tratado com oxigênio após ataque com gás na cidade de Khan Sheikhun, na Síria

A situação da Síria vem se agravando há anos, e uma mudança seria bem vinda, mas simplesmente declarar que o horror teve "grande impacto" não bastará. Em uma mudança abrupta de tom ante sua postura da terça-feira, que era a de transferir a culpa a terceiros, Trump declarou que "agora eu tenho a responsabilidade, e terei essa responsabilidade e a executarei com muito orgulho. Vou afirmar. A responsabilidade agora é minha". Isso é um começo, mas o que o presidente fará?

Sim, as condições concretas se agravaram devido a anos de inação da parte dos Estados Unidos, mas ainda assim Trump "não está desprovido de opções", diz meu colega e guru de relações internacionais, Robert Kagan. "O governo Trump pode agir agora, da mesma forma que o governo Obama poderia ter agido, para impedir as operações da força aérea de Assad".

Ele acrescenta que diversas opções militares (zonas de interdição de voo, zonas de interdição de movimento de veículos, ataques contra a força aérea de Assad) "sempre estiveram disponíveis, e foram recomendadas por assessores importantes do governo anterior, mas foram sempre rejeitadas por Susan Rice e Ben Rhodes, e é claro, por Obama mesmo, por serem arriscadas demais e contrárias à nova doutrina de inação perpétua adotada por Obama".

Trump tem a chance de expor e corrigir esse erro trágico na política de seu predecessor. Isso significaria, é claro, admitir que que a posição dele sobre a Síria e seu afeto por Putin foram erros, mas é melhor não agravar esses erros imitando a política de Obama.

Alternativamente, ele pode perpetuar a política de reacomodação de Obama, como parece estar fazendo quanto aos direitos humanos e na falta de urgência que vem demonstrando para com os desígnios expansionistas da Rússia.

Kagan diz que "talvez devêssemos batizar a política de doutrina Obama-Trump, porque as continuidades na política externa dos dois governos se tornam mais evidentes a cada dia, e se provam cada vez mais importantes que as descontinuidades". Nossa esperança deve ser a de que Trump abandone a política de seu predecessor.


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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