Folha de S. Paulo


De rebelde com fantasia de Carnaval a capotamento; veja relatos de guerra

Yan Boechat/Folhapress
Jornalistas acompanham chegada de iraquiano ferido em hospital de campanha de Mossul
Jornalistas acompanham chegada de iraquiano ferido em hospital de campanha de Mossul

A vida na guerra é um eterno esperar. Um permanente aguardo de que o estado das coisas mude, independentemente de para qual direção.

Em meio à expectativa, à angústia, à ansiedade permanente de procurar saber que o status quo se alterará, as pessoas que vivem a guerra tentam, ainda que por puro instinto, dar algum senso de normalidade às suas vidas.

Soldados sonham com lugares distantes que um dia querem conhecer, donos de hotéis definem os preços de seus quartos de acordo com a possibilidade de seus clientes serem mortos, e inimigos negociam questões familiares entre si em busca de benefícios mútuos.

Na guerra, os valores morais se tornam mais flexíveis, os apetites mais diversificados. E as tentativas de viver uma vida comum em um ambiente em que se luta diariamente pela sobrevivência cria situações tão surreais quanto impensáveis. Todo repórter tem uma coleção delas para contar. Estas são algumas das que vivi.

*

GOMA, República Democrática do Congo, mar.2014

John, um jornalista canadense que conheci na sede da ONU em Goma, na fronteira entre a República Democrática do Congo e Ruanda, me garantiu que não havia riscos.

Só precisávamos dar carona para a mulher de um líder militar rebelde e teríamos total acesso aos hutus que comandaram o genocídio contra os tutsis em 1994, quando quase 1 milhão de pessoas foram mortas a golpes de facão em poucos meses.

A mulher estava internada em Goma, e nossa missão era alugar um carro, conseguir um tradutor e subir as montanhas em território rebelde com ela. Seríamos recebidos muito bem, e o momento era especial.

O aniversário dos 20 anos do genocídio se aproximava. E, disse ele, o melhor: teremos uma escolta do Exército congolês até a entrada do território dos hutus. O que poderia dar errado?

Alugamos um pequeno jipinho caindo aos pedaços. Apenas um farol funcionava, e a bateria dava sinais de que vivia seus últimos e sofridos momentos. A nós juntaram-se uma jornalista francesa e um tradutor congolês.

Estava tudo certo, seriam cinco horas por estradas de terra em território hostil, sem controle efetivo do governo. Seguimos bem até chegar em uma área de escarpas.

A partir dali o motorista de nossa escolta parecia estar em um rali. "Não consigo dirigir assim, meu carro é muito ruim", tentei explicar.

Mas um deles foi bem objetivo ao me demover da ideia de ir mais lentamente. "Você quer morrer ou chegar lá? Aqui não podemos ir devagar."

Poucos quilômetros à frente, a roda dianteira da nossa caminhonete atingiu um pedaço da estrada com solo mais frágil. Eu não havia percebido que dirigia tão perto da encosta.

E então, lentamente primeiro, o carro começou a virar. Girou algumas vezes e a sensação era de que eu havia tomado o caldo de uma onda grande tentando pegar jacaré. Tudo girava de forma desconexa.

Yan Boechat/Folhapress
Jipe usado pela reportagem capotado nas montanhas da República Democrática do Congo, em 2014
Jipe usado pela reportagem capotado nas montanhas da República Democrática do Congo, em 2014

Paramos, acho que batemos em uma bananeira, para logo em seguida voltar a cair. Quando o carro parou, virado com as rodas para cima, eu só conseguia ouvir John gritando: "Não se mexe, ele vai rolar novamente".

Ele, nosso tradutor e Alice, a colega francesa, já haviam saído do carro. Sob mim, ainda preso pelo cinto, estava a mulher que deveríamos levar até os hutus. Ela gemia, parecia agonizar.

John, do lado de fora, continuava a gritar: "Não se mexe, não se mexe". Eu me mexi. A chance de voltar a cair ribanceira abaixo não me agradou.

Soltei o cinto e despenquei sobre a mulher que deveríamos entregar sã e salva para os homens que comandaram a maior matança humana desde a Alemanha nazista. Ela soltou um gemido, e silenciou.

"Você a matou, eles vão nos matar, vão nos matar", dizia John, o rosto ensanguentado, o braço com um rasgo de mais de 10 centímetros.

Nosso tradutor começou a chorar. Alice pedia calma quando os soldados de nossa escolta desceram a ribanceira com as lanternas e armas nas mãos. "Vamos sair daqui, rápido, é perigoso".

Seguimos para um vilarejo próximo. A mulher não havia morrido. Na verdade, mal havia se machucado. Mas, com o susto, desmaiou, e sentia dores por todo o corpo. Algo bastante compreensível quando alguém com mais de 100 quilos despenca sobre você. Passamos a noite em uma casa, tentando estancar o sangramento de John.

Na manhã seguinte, entregamos a mulher ao emissário do líder hutu. "A comunidade está muito abalada com o acidente", disse ele. "Talvez esse não seja o melhor momento para serem recebidos". Recado dado.

Voltamos para Goma no mesmo caminhão que havia nos escoltado, sentados sobre granadas, munição e pequenos lançadores de foguetes.

Perdemos a reportagem e um carro que nos custaria mais de US$ 6 mil. No fim, John concordou que ele estava errado no dia em que nos encontramos. Tudo podia e deu errado.

*

DONETSK, Ucrânia, abr. 2015

Sasha saiu do carro com o AK-74 —o primo mais moderno do rifle russo criado por Mikhail Kalashnikov em 1947— apontado para nós.

Estávamos apenas a dois quilômetros do aeroporto de Donetsk, palco das batalhas mais violentas entre os rebeldes separatistas apoiados pela Rússia e o Exército da Ucrânia. Alisa, minha tradutora, tentou acalmar Sasha, mas ele só gritava: "Passaportes, passaportes!!"

Lentamente, tirei o meu de minha jaqueta e lhe entreguei. Sasha olhou, curioso, e perguntou, já em outro tom: "Você é brasileiro mesmo?"

Alisa tratou de explicar a situação. Sim, eu era do Brasil, um jornalista que estava cobrindo a guerra e que gostaria muito de visitar o aeroporto. "Eu sou comandante no aeroporto, posso levar vocês, mas hoje não, estou cansado, ainda não dormi."

Antes de ir embora, ele começou a me contar o quanto amava o Brasil. Havia estudado balé e depois tentara ser patinador profissional. As coisas não deram muito certo, mas ele amava como as pessoas dançavam no Carnaval e como os jogadores eram tão elegantes no futebol.

"Meu sonho é ir ao Rio de Janeiro. Amanhã vou te provar como gosto do Brasil", disse, já feliz.

Combinamos o encontro, mas sem acreditar muito que ele aconteceria de fato. Sasha parecia bêbado, cheirava a bebida e estava excitado demais para quem passara a noite combatendo.

Alisa concordou. "Podemos tentar, mas acho difícil que ocorra."

Às 9h,estávamos no lugar marcado. Esperamos, já desanimados, por quase 40 minutos. E então a mesma caminhonete chegou, em alta velocidade. De dentro, sai Sasha. AK-74 nas mãos e um adereço de escola de samba na cabeça, com penas de pavão a balançarem no vento frio daquela manhã do leste da Ucrânia.

Yan Boechat/Folhapress
O rebelde russo Sasha usa adereço carnavalesco em uma das batalhas em Donetsk, no leste ucraniano
O rebelde russo Sasha usa adereço carnavalesco em uma das batalhas em Donetsk, no leste ucraniano

"Eu não te disse, não disse que amava o Brasil", ria ele, enquanto nos mandava entrar em seu carro. Seguimos para o aeroporto, Sasha feliz por ser o guia de um jornalista brasileiro em meio ao caos da guerra ucraniana. "Estou tão feliz que vou até dar um tiro, quer atirar?", dizia, enquanto disparava seu rifle. Recusei a oferta.

*

MOSSUL, Iraque, nov. 2016

As colunas de fumaça no horizonte davam a ideia da intensidade da batalha que apenas ouvíamos da periferia de Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, no norte do país. Uma, duas, três colunas surgiram. Sabíamos o que elas significavam: eram carros-bomba.

Apenas nos três primeiros meses de combates para a retomada da cidade, a milícia terrorista Estado Islâmico detonou mais de 1.200 carros bomba, dirigidos por motoristas suicidas.

Naquele dia frio e chuvoso, não conseguimos autorização para acompanhar as tropas iraquianas.

Decidimos fazer plantão no hospital de campo do Exército iraquiano, o centro de atendimento médico mais próximo do front.

Era uma manhã calma, com poucas vítimas civis, as únicas que jornalistas são autorizados a fotografar. Militares feridos, jamais.

A maior parte dos repórteres se aproveitava do fato de as antenas de conexão 3G estarem funcionando perfeitamente em meio às batalhas. Esperando, alguns liam notícias, outros conversavam com a família e havia até uma pequena disputa de sinuca pelo celular.

Mas, quando vimos as colunas, já sabíamos. Em pouco tempo, o hospital estaria repleto de vítimas.

Então, elas começaram a chegar. Primeiro nos blindados do Exército, depois em caminhões civis e, por último, em pequenas carroças puxadas pelas pessoas.

Naquele dia, por alguma razão, o número de crianças feridas era imenso. Algumas chegavam mortas, destroçadas, com ferimentos horríveis. Outras, agonizando.

Logo, as cenas de desespero e de crianças morrendo nas macas se repetiriam por várias vezes. São cenas fortes, mas geralmente os jornalistas e os médicos lidam com essas situações de maneira profissional.

Um fotógrafo em especial, porém, parecia não estar suportando tudo aquilo. Com o celular na mão e a máquina no pescoço, começou a parecer que ia desabar.

As lágrimas começaram a correr, e logo ele estava chorando. Saiu da cena onde tudo se desenrolava, sentou-se e não conteve o choro. Realmente ele estava abalado.

Yan Boechat/Folhapress
Jornalista inglês navega na internet enquanto faz plantão em hospital de campanha de Mossul
Jornalista inglês navega na internet enquanto faz plantão em hospital de campanha de Mossul

Alguns colegas se reuniram a seu lado. Disseram entender que, de fato, eram cenas fortes, mas que a vida é assim, escolhemos estar aqui, isso faz parte. O fotógrafo apenas repetia: "Não, não é isso", e chorava.

Então, em um momento de calma, ele explicou o que o deprimia tanto.

"Olha, não são as crianças, isso eu já vi umas mil vezes", contou. "Eu estou desse jeito porque minha mulher está terminando comigo pelo Facebook. Pelo Facebook, cara, agora. Isso é ou não é uma sacanagem?"

Ninguém que estava ali falou nada. Nós apenas nos solidarizamos com tapas nas costas dele e entendemos que, de fato, a internet mudou tudo no jornalismo.

*

Cabul, Afeganistão, Agosto/setembro de 2003

O Hotel Mustafá era a única opção para jornalistas, turistas de guerra, mercenários ou qualquer outra pessoa que não podusse arcar com os valores estratosféricos do Inter-Continental de Cabul em 2003.

Cheguei na cidade decidido a passar um mês cobrindo de forma independente os reflexos daquela fase de uma guerra que devastava o país da Ásia Central havia mais de duas décadas. E o Mustafá era o meu destino. Lá, o dono do hotel com o único bar de Cabul recepcionava os clientes e acertava os preços. Bom inglês, sorrisão aberto, foi direto: "quarto duplo US$ 50,00, sem banheiro, sem café da manhã". Era muito. Eu e uma colega sul-africana que viajava comigo explicamos que não tínhamos como pagar aquele valor. Lembramos a ele que éramos jornalistas freelancers, vindos também da periferia do mundo. Que éramos, enfim, pobres.

Mustafá pareceu se solidarizar. "Tenho um quarto na frente, com janelas para as montanhas, posso fazer por US$ 30, interessa?". Claro que interessava. Chegamos no quarto e nos surpreendemos. Era amplo, com duas mesas, duas camas confortáveis e tinha uma vista linda para as pequenas colinas que circundam Cabul. O banheiro do corredor estava limpo. Concordamos que até na guerra era possível encontrar pessoas sensíveis e gentis. Mustafá, aquele sim, era um homem que não havia sido endurecido por anos de tragédias à sua volta.

À noite, no bar do Hotel repleto de jornalistas tão ou mais pobres do que nós, mercenários paranoicos bebendo com pistolas em cartucheiras e com rifles AK-47 do lado da mesa, resolvemos dividir nossa alegria de ter encontrado alguém como Mustafá. "A única coisa estranha é que parece não haver ninguém nessa parte do hotel, só a gente", disse Belinda, minha colega sul-africana, após rasgados elogios ao hoteleiro de Cabul. Gary, um ex-soldado americano, nos olhou e perguntou: "Vocês são loucos ou idiotas? Já abriram a janela? Não viram os blindados ali na porta, as montanhas ali na frente?". Sim, havíamos visto. "Pois é, seu quarto será o primeiro a ser destruído se explodirem um carro bomba aqui ou atirarem uma granada".

Então, tudo fez sentido. Apenas nós, e só nós, aceitávamos pagar US$ 30 a noite para ficar em um local tão exposto. Fomos tirar satisfação com Mustafá. Ele, surpreso, fez uma pergunta que hoje faz todo o sentido: "Vocês não pensaram nisso?" Passamos, eu e Belinda, um mês dividindo um quarto de solteiro sem janelas, com apenas uma cama, nos fundos do hotel. Mustafá nos cobrou US$ 35 a diária. Pagamos, sem reclamar.


Endereço da página:

Links no texto: