Folha de S. Paulo


O efeito auréola e o avanço da extrema direita na Alemanha

Buch, uma pequena comunidade nos arredores de Berlim, à primeira vista parece ser o tipo de lugar que a personagem infantil Cachinhos Dourados classificaria como "no ponto". A cidade não é rica demais nem pobre demais, dispendiosa demais ou decadente demais, e fica longe o suficiente do movimentado centro da cidade para garantir o conforto, mas não longe o bastante para dificultar o deslocamento diário rumo à capital.

Provavelmente não é o tipo de lugar que as pessoas imaginam quando pensam sobre a onda de populismo de extrema-direita que vem varrendo a Europa. Mas, sob a superfície, essa comunidade aconchegante e segura é muito diferente das zonas pós-industriais economicamente deprimidas que costumam ser retratadas como locais de origem do populismo, e é emblemática das forças que estão ameaçando subverter a democracia ocidental na forma pela qual a conhecemos.

Nesse aparente baluarte da regularidade, o Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em alemão), um partido populista de extrema-direita, conquistou mais de 22% dos votos em uma eleição local em 2016, tornando-se o partido mais votado.

Fui a Buch para compreender melhor como o populismo de extrema-direita deitou raízes em boa parte da Europa. E descobri sinais de forças sutis que os cientistas sociais há muito apontam, em suas teorias, como possíveis causas para a onda populista que vem crescendo nas sociedades do Ocidente.

Tobias Schwarz - 19.set.2016/AFP
A líder da AfD, Frauke Petry, em entrevista após as eleições regionais de Berlim, em setembro
A líder da AfD, Frauke Petry, em entrevista após as eleições regionais de Berlim, em setembro

EFEITO AURÉOLA

Na superfície, Buch parece ser uma fonte improvável de ira contra os imigrantes.

Para começar, não existem muitos imigrantes na cidade. Embora muitos bairros da vizinha Berlim apresentem imensa diversidade, e estejam repletos de refugiados e imigrantes vindos de todos os cantos do planeta, Buch se manteve majoritariamente branca, apesar da presença de um pequeno centro de refugiados no centro da cidade.

Os cientistas sociais definem o fenômeno como "efeito auréola": a probabilidade de que as pessoas votem em políticos de extrema-direita cresce se elas viverem em áreas próximas a comunidades diversificadas mas não dentro dessas comunidades. O fenômeno se repete por toda a Europa.

Jens Rydgren e Patrick Ruth, sociólogos da Universidade de Estocolmo, escreveram em 2011 que as pessoas que moram nessas comunidades talvez vivam suficientemente perto de imigrantes para que se sintam ameaçadas, mas não perto o bastante para manter interações amistosas e regulares com eles que dissipariam seus temores.

Eric Kaufmann, cientista político do Birkbeck College, de Londres, constatou que a ascensão na diversidade pode estender o alcance da "auréola". A zona leste de Londres era um centro de ativismo de extrema-direita nos anos 70, mas, quando os bairros da área ganharam maior diversidade populacional, o apoio à extrema-direita caiu na região e se expandiu em subúrbios majoritariamente brancos logo além dos limites da cidade.

Buch parece se enquadrar a esse padrão. A despeito da chegada de alguns refugiados, o número de muçulmanos na cidade é tão pequeno que o supermercado local não vende carnes halal [oriunda de animais abatidos de acordo com preceitos do islã]. Mas a comunidade fica em um distrito que faz fronteira com o bairro de Wedding, uma das áreas mais diversificadas de Berlim.

Os moradores brancos de Buch, de acordo com essa teoria, têm medo não porque suas vidas e empregos tenham sido perturbados pela imigração, mas porque percebem que algo parecido está acontecendo em áreas como Wedding e se preocupam que a vez deles esteja por chegar.

IDENTIDADE NEGATIVA

Do outro lado de Buch, ao longo de uma estrada ladeada por blocos de apartamentos construídos na era comunista, visito a igreja em que Cornelia Reuter e seu marido, Hagen Kühne, vivem e trabalham como pastores.

Reuter disse que alguns de seus paroquianos têm medo de que mais refugiados sejam enviados a Buch.

Ela e o marido consideram que esse medo seja causado em parte por um problema mais profundo. Muitas pessoas em sua comunidade, eles dizem, não têm um senso claro de identidade e de inclusão, e enfrentam dificuldade para encontrá-lo.

Depois da Segunda Guerra Mundial, celebrar ou mesmo definir a identidade alemã se tornou tabu, e muitas vezes era visto como um passo na direção do nacionalismo que permitiu a ascensão dos nazistas. A atitude mudou um pouco com a Copa do Mundo de 2006, quando os anfitriões alemães hastearam suas bandeiras com orgulho e celebraram sua nacionalidade.

Mas continua a existir um vácuo, que causa um "vazio interior" nas pessoas, segundo Reuter. Essa lacuna no que tange à definição pessoal não deixa outra forma de definir a identidade exceto com base naquilo que as pessoas não são –uma tendência que é às vezes descrita como "identidade negativa".

"Você pode dizer que não é muçulmano, mas a maioria das pessoas não dizem ser cristãs", e tampouco articulam sua identidade de alguma outra maneira positiva, explicou Reuter. "Há um vazio. E acho que ele abarca toda a sociedade. Não se trata apenas de um grupo. É um problema muito amplo".

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TOMANDO O CONTROLE

O tabu da identidade não é novo, na Alemanha. Mas acontecimentos recentes fizeram com que ele subitamente parecesse mais doloroso.

Immo Fritsche, cientista político da Universidade de Leipzig, constatou que quando as pessoas sentem que perderam o controle, buscam uma identidade forte que as torne parte de um grupo poderoso.
A identificação com algo de poderoso e capaz de promover mudanças, por exemplo uma nação poderosa, se torna muito atraente, ele diz.

Reuter disse que muita gente em Buch compartilha dessa sensação de perda de controle. A crise de refugiados foi vista como sinal de que as fronteiras da Alemanha são uma região sem lei. E a presença do centro local de refugiados, ainda que ele abrigue apenas algumas centenas de pessoas, criou um senso de urgência.

Isso deixou espaço para o Alternativa para a Alemanha, que promete restaurar o patriotismo alemão. Políticos de extrema-direita como Björn Höcke, um dos líderes do partido, disse Reuter, sabem como explorar o tabu da identidade. "Pessoas como Höcke se aproveitam disso", ela disse. "Ele sabe como colocar suas palavras da maneira exata".

Em entrevista, Höcke me disse que acreditava que a identidade era "a questão" na Alemanha atual.

Minutos mais tarde, ele discursou diante de centenas de partidários entusiásticos e disse que os alemães eram "o único povo do mundo a colocar um monumento da vergonha no coração de sua capital", em referência ao memorial que existe em Berlim em honra dos judeus assassinados no Holocausto.

"A Alemanha precisa de um relacionamento positivo com a nossa identidade", ele me disse, "porque a identidade é a fundação para que possamos seguir adiante. A fundação de nossa unidade é a identidade".

CONFORTO VIA CONTATO

À medida que você se aproxima do centro de refugiados de Buch, os sinais de hostilidade para com os imigrantes se tornam mais fortes. Cartazes do Alternativa para a Alemanha, rasgados e jogados no chão, mostram homens sorridentes, de pele escura, com as mãos cheias de euros.

E a sensação de ameaça também se intensifica. Uma das edificações do centro de refugiados porta marcas de fumaça, deixadas por uma recente tentativa de incêndio criminoso.

Juliane Willuhn, a diretora do centro, diz que o crime ainda não foi solucionado. Ninguém foi ferido no incêndio, mas o ataque parece ter sido pretendido como ameaça. Os investigadores concluíram que o incêndio foi ateado intencionalmente, em uma sala onde carrinhos de bebê ficavam guardados. Deles, só restaram cinzas e algumas rodas calcinadas.

Mas diversos moradores de Buch que vivem perto do centro de refugiados expressaram otimismo com relação aos vizinhos refugiados, em entrevistas. Suas declarações apontavam para o lado oposto de teorias como a do efeito auréola, ou seja, para o fato de que contato com pessoas diferentes atenua os medos que poderiam causar reações populistas.

As entrevistas apontavam para a chamada teoria do contato intergrupal: quando pessoas têm contato direto com membros de um grupo nacional ou étnico específico, elas tendem a se tornar mais tolerantes com relação ao grupo como um todo.

Isso sugere que contato regular com imigrantes reduz o apoio aos partidos populistas de extrema-direita ao acalmar a sensação de medo que os alimenta.

Se isso procede, talvez seja uma indicação de que o domínio do Alternativa para a Alemanha sobre Buch pode ser mais fraco do que os recentes sucessos eleitorais do partido indicam. Mas o efeito desse tipo de contato demora a se desenvolver, enquanto o partido já obteve uma ascensão meteórica.

O apoio à extrema-direita pode um dia diminuir. Mas enquanto isso, os imigrantes na Alemanha e a política europeia sofrerão imenso desgaste.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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