Folha de S. Paulo


A realidade dos imigrantes que vivem ilegalmente nos EUA

Há 11 milhões deles, de acordo com as melhores estimativas, trabalhando em plantações, na construção de edifícios e nas cozinhas de restaurantes, e lotando salas de aula, centros de detenção e tribunais de imigração norte-americanos.

Na mente do público, os imigrantes não autorizados –pessoas vivendo nos Estados Unidos sem permissão do governo norte-americano– são hispânicos, em sua maioria mexicanos, e cruzaram em segredo a fronteira sudoeste do país.

Ryan David Brown - 15.fev.2017/The New York Times
A supporter of Jeanette Vizguerra, an undocumented immigrant who has spent 20 years working in the United States and has three American children, outside the Immigration and Customs Enforcement office in Denver, Feb. 15, 2017. Many people assume that most of the people who entered the United States illegally are from Mexico. But many are not, and they arrived here in myriad ways. (Ryan David Brown/The New York Times)
Manifestante demonstra apoio a Jeanette Vizguerra, que vive há 20 anos nos EUA

Aos olhos de seus defensores, eles são trabalhadores e famílias, aceitam os empregos que ninguém mais quer, buscam evitar problemas, e só estão no país para batalhar por vidas melhores e mais seguras, para eles mesmos e seus filhos.

Para a Casa Branca, eles são párias, criminosos que ameaçam os bairros das cidades dos Estados Unidos, roubam os empregos dos norte-americanos, esgotam os recursos do país e exploram a generosidade americana. São pessoas que deveriam ser expulsas –e serão.

Os imigrantes não autorizados podem ser muitas dessas coisas, e mais. 11 milhões é um número que oferece alcance considerável, e contradição considerável.

Talvez não exista símbolo mais poderoso da ideia fixa sobre o México como ponto de origem dos imigrantes ilegais do que a muralha que o presidente Donald Trump propõe construir ao longo da fronteira sul dos Estados Unidos. Mas muitos dos imigrantes não autorizados não são mexicanos; um quarto deles nem mesmo são hispânicos.

Atrás do México, Guatemala, El Salvador e Honduras, o maior número de imigrantes não autorizados vem da China (o total estimado é de 268 mil). E a China é um dos 23 países que não cooperam com deportações. (O governo Trump prometeu pressionar todos os 23 para que passem a fazê-lo.)

Os imigrantes tendem a ser jovens –o Pew Research Center constatou que os imigrantes não autorizados adultos têm idade média 10 anos mais baixa que a dos adultos norte-americanos médios– e a proporção de homens entre eles é ligeiramente mais alta do que no restante da população.

Geografia e demografia são apenas duas formas de categorizar os 11 milhões. As circunstâncias oferecem uma terceira: ao buscar um controle mais severo dos imigrantes não autorizados pelas autoridades, Trump terá de enfrentar uma população de pessoas que chegaram de diversas maneiras e por uma miríade de razões, e cada fatia dessa população oferecerá desafios peculiares.

FORTES LIGAÇÕES

Na opinião de muitos progressistas e defensores da imigração, a maioria dos imigrantes não autorizados são membros produtivos da sociedade, respeitam a lei, deitam raízes profundas em suas comunidades, trabalham com afinco, vivem discretamente, pagam seus impostos e cuidam de suas famílias.

As estatísticas demonstram que muitos deles de fato se enquadram nesse perfil. Cerca de 60% da população de imigrantes não autorizados vivem nos Estados Unidos há pelo menos uma década, de acordo com o Migration Policy Institute, uma organização apartidária.

Um terço dos imigrantes não autorizados com idade de 15 anos ou mais vive em companhia de pelo menos um filho nascido nos Estados Unidos. Pouco mais de 30% deles são proprietários de casas. Apenas uma pequena fração foi condenada por crimes ou delitos graves.

É claro que, como enfatiza o governo Trump, estar nos Estados Unidos sem autorização já representa uma violação da lei.

Até mesmo a terminologia empregada com relação ao problema é reveladora: os conservadores preferem o termo "imigrantes ilegais", que a linha dura muitas vezes abrevia para apenas "ilegais"; os defensores dos imigrantes preferem "imigrantes não documentados", uma formulação que segundo eles devolve a conversa aos seres humanos em questão, mas também tem seu lado de eufemismo. "Não autorizados" muitas vezes é empregado como alternativa neutra.

Não importa o rótulo, pessoas como Lydia, 47, dona de uma pequena joalheria em Los Angeles, não consideram que estejam violando a lei.

Lydia, que como muitos dos imigrantes não autorizados não permitiu que seu sobrenome fosse publicado por medo de deportação, cruzou a fronteira para os Estados Unidos em Tijuana em 1988. Ela buscou ajuda legal junto a um notário, acreditando equivocadamente que "notário" significa especialista jurídico, como é o caso em muitos países da América Latina.

Lydia terminou por receber uma ordem de deportação. Mas o governo Obama reduziu a prioridade da deportação de pessoas que não tenham cometido crimes graves, o que permitiu que ela continuasse vivendo e trabalhando nos Estados Unidos desde que se apresentasse uma vez por ano a um agente de imigração.

Lydia criou quatro filhos, todos cidadãos dos Estados Unidos, e eles estudaram em escolas públicas do Sun Valley, um subúrbio ao norte de Los Angeles. Ela e o marido compraram uma casa lá, cuja hipoteca está paga, e também são donos de uma segunda casa no bairro.

Agora, ela voltou a ser candidata a deportação, e fica ansiosa sempre que sai à rua.

"Vivo no limbo", ela disse. "Tenho medo de sair de casa e nunca mais voltar".

Todd Heisler - 24.mar.2014/The New York Times
FILE — Men facing deportation are handcuffed at a Border Patrol station before taking a flight to Miami, en route to Honduras, in Brownsville, Texas, March 25, 2014. Many people assume that most of the people who entered the United States illegally are from Mexico. But many are not, and they arrived here in myriad ways. (Todd Heisler/The New York Times)
Imigrantes não autorizados são algemados no Texas antes de serem deportados para Honduras

DELITOS GRAVES E LEVES

Na narrativa da campanha presidencial de Trump, havia poucas ameaças mais graves que a figura do imigrante ilegal que coloca em risco a segurança dos norte-americanos –os "estupradores" e "assassinos" do México, nas palavras do presidente.

Há pessoas que merecem essa descrição. O Migration Policy Institute estimou que 820 mil dos 11 milhões de imigrantes não autorizados já foram condenados por algum delito. Cerca de 300 mil, ou menos de 3% deles, cometeram crimes. (Na população norte-americana como um todo, a proporção de pessoas que já cometeram crimes é de 6%, de acordo com um estudo apresentado à Population Association of America.)

Agentes de imigração prendem regularmente aqueles que o governo descreve como "estrangeiros criminosos".

No final de janeiro, agentes detiveram um mexicano de 50 anos que tinha condenações por agressão com uma arma letal, agressão a um policial, roubo de carros e violência contra uma criança, perto de Milwaukee. O homem já havia sido deportado duas vezes.

No mês passado, capturaram um hondurenho não autorizado, na Carolina do Norte –Francisco Escobar Orellana é procurado pelas autoridades de Honduras por ter supostamente matado dois homens com golpes de facão, em 1993.

O governo Trump declarou que continuará a priorizar a deportação de pessoas com históricos de crimes graves, mas, abandonando o precedente do governo Obama, suas novas políticas também tomam por alvo imigrantes cujos delitos estão limitados a viver nos Estados Unidos sem permissão, dirigir sem habilitação ou usar um número falso de previdência social.

A Administração da Previdência Social norte-americana estimou que, em 2010, 1,8 milhão de imigrantes não autorizados trabalhavam usando números de previdência social que não correspondiam aos seus nomes.

No meio de um canavial em Clewiston, Flórida, onde os dois têm trabalhos exaustivos, Maria e Benjamin se esforçam por cumprir as regras, pagar impostos e evitar problemas. Mas agora temem que a única regra que Benjamin precisou violar a fim de sobreviver –ele usou um número falso de previdência social para conseguir emprego– pode ser o fim para eles.

Benjamin, 42, é o mecânico dos caminhões hidráulicos usados no corte de cana na plantação, o que significa que ele trabalha 17 horas por dia, muitas vezes noite adentro.

"Isso nos preocupa, mas não temos escolha", disse Maria, 38, que chegou do México aos 19 anos. "Ele sempre trabalhou e sempre teve um cartão falso da previdência social. Esse é o jeito de conseguir emprego".

PRAZO DE VISTO

Algumas pessoas fazem longas jornadas a pé, de trem ou de barco –em alguns casos com a ajuda de contrabandistas– para atravessar a fronteira. Mas para crescente número de imigrantes, sua situação nos Estados Unidos se torna ilegal do dia para a noite e sem que eles precisem dar nem mesmo um passo.

A cada ano, entre 2007 e 2014, mais pessoas se tornaram parte da população de imigrantes não autorizados ao optarem por permanecer nos Estados Unidos depois da expiração de seus vistos como turistas do que por atravessarem a pé a fronteira entre o país e o México, de acordo com um relatório dos pesquisadores do Center for Migration Studies.

Números como esse convenceram alguns conservadores de que o governo federal precisa se preocupar mais com as pessoas que abusam de seus privilégios temporários como visitantes do que com a segurança da fronteira.

Em 2005, Wei Lee e seus pais viajaram do Brasil, onde o pai dele tinha um restaurante no subúrbio de São Paulo, para San Francisco, com vistos de turismo. Eles permaneceram nos Estados Unidos depois que seus vistos expiraram.

Depois de ser vítima de assalto e agressão em 2013, Lee recentemente recebeu um visto U, reservado a vítimas de crimes. Seus pais, porém, continuam não autorizados.

"Algumas pessoas entendem mal a situação, e acham que as pessoas chegam aqui e estouram o prazo de seus vistos de propósito, mas existem muitos fatores de pressão", disse Lee, 28, que tem diploma universitário e trabalha com jovens imigrantes asiáticos não autorizados. "Meus pais tiveram de tomar uma decisão sobre suas vidas".

Depois da expiração do visto de turista que Rebeca, antiga repórter televisiva na Venezuela, usou para entrar nos Estados Unidos, ela encontrou emprego como babá, e depois se tornou estilista de uma confecção do sul da Califórnia. Rebeca, 30, disse que deixou a Venezuela por ter sido agredida e receber ameaças de morte ao protestar contra o governo do país, depois da morte do presidente Hugo Chávez.

Ela pediu asilo, mas diz que vai demorar anos para que seu caso seja considerado: em Los Angeles, as autoridades de imigração estão agendando audiências agora para pessoas que solicitaram asilo em 2011.

Matthew Busch - 22.fev.2017/The New York Times
Part of the border fence that separates the United States and Mexico, near McAllen, Texas, Feb. 22, 2017. Many people assume that most of the people who entered the United States illegally are from Mexico. But many are not, and they arrived here in myriad ways. (Matthew Busch/The New York Times)
Trecho da barreira entre os EUA e o México, no Texas

TRAVESSIAS REPETIDAS

Um motivo para que Trump e muitos proponentes de restrições à imigração vejam a fronteira mexicana como alarmantemente porosa é que milhares de pessoas são condenadas a cada ano por reentrarem ilegalmente nos Estados Unidos depois de terem sido deportadas.

Apenas no ano fiscal de 2015, 15.715 pessoas foram condenadas por isso, de acordo com a Comissão de Sentenciamento dos Estados Unidos. Cerca de um quarto das pessoas apanhadas cruzando a fronteira sudoeste naquele ano já o haviam feito pelo menos uma vez, de acordo com um relatório do Serviço de Auditoria do Governo.

Isso posto, o número de pessoas condenadas por reentrada ilegal nos Estados Unidos caiu em um quarto nos últimos cinco anos.

Em dezembro de 2013, agentes de segurança da fronteira apanharam Clemente Armenta-Velasquez tentando retornar aos Estados Unidos perto de Nogales, Arizona. Depois de chegar aos Estados Unidos em 2000, ele viveu e trabalhou no Arizona, onde, mostram os registros, terminou processado por acusações relacionadas a drogas em 2002.

Ele serviu uma sentença de prisão em 2010 depois de ser condenado por posse de maconha com intenção de distribuição, o que é considerado crime. Armenta-Velasquez foi deportado no ano seguinte.

O advogado dele declarou a um juiz federal que seu cliente, que só estudou até a quinta série, havia tentado retornar para sustentar a mulher e os três filhos no México. "Ele não encontrou emprego no México que desse vida decente à sua família", disse o advogado, Ricardo Bours, de acordo com documentos judiciais.

Antes de sentenciar Armenta-Velasquez a 57 meses de prisão, ao final dos quais ele certamente será deportado de novo ao México, o juiz afirmou que o acusado poderia ter sido deportado em seis outras ocasiões, no passado.

"Eu sabia que não devia voltar", disse Armenta-Velasquez no tribunal. "Só o fiz por grande necessidade, e me desculpo por isso".

EM BUSCA DE ASILO

Em 14 de fevereiro, Rogelio Ortiz foi a um escritório local de imigração em Charlotte, na Carolina do Norte, para atualizar o endereço de sua família. Ele estava buscando asilo nos Estados Unidos, depois de chegar de Honduras um ano antes fugindo de traficantes de armas que o ameaçaram depois que ele lhes pediu que parassem de usar a casa de seu irmão como depósito de armas.

Quinze minutos mais tarde, um funcionário saiu e disse à mulher de Ortiz, Teresa, e sua filha, Abigail, que ele havia sido detido. Sem saber, Rogelio Ortiz, 49, já havia fracassado em seu caso de asilo, por ter sido deportado 14 anos antes, ao final de um período anterior de trabalho nos Estados Unidos, o que o torna inelegível para asilo.

Desde 2009, imigrantes do México e da região do triângulo norte da América Central –El Salvador, Guatemala e Honduras– vêm cruzando a fronteira em ritmo acelerado, fugindo da violência das gangues e da pobreza. Muitas dessas pessoas são crianças viajando desacompanhadas, ou mulheres com filhos.

Quase 409 mil imigrantes foram apanhados tentando cruzar ilegalmente a fronteira sudoeste dos Estados Unidos, no ano fiscal de 2016, alta de 23% ante o total do ano anterior, de acordo com estatísticas do governo.

Muitos deles buscam asilo, mas na maioria dos casos os pedidos são negados. Enquanto esperam, em um processo cuja conclusão pode demorar anos, eles muitas vezes são autorizados a ingressar e se deslocar livremente no país.

Isso pode permitir que desapareçam da vista das autoridades de imigração. O sistema irrita aqueles que defendem proteção mais vigorosa, e levou o governo Trump a propor a detenção de pessoas que buscam asilo na fronteira ou forçá-las a esperar o resultado de suas solicitações de asilo no México.

"Sei que entrar ilegalmente no país é crime, mas milhões de pessoas já o fizeram, e agora somos nós que estamos aqui buscando ajuda", disse Teresa.

Agora ela está em busca de trabalho para pagar por uma passagem de avião. Teresa planeja renunciar ao seu pedido de asilo e voltar a se reunir com seu marido –desta vez, de volta em Honduras.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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