Folha de S. Paulo


Análise

Ambiguidade fez política de drogas da Holanda resistir a pressões

A política de drogas holandesa foi pioneira em não criminalizar, na prática, a posse de pequenas quantidades de maconha para consumo próprio, ainda que mantivesse o status ilegal dessa e de outras substâncias.

A oposição entre teoria e prática permitiu que o país criasse um modelo diferente daquele preconizado pelas três convenções que compõem o sistema internacional de controle de drogas, das quais a Holanda é signatária, sem formalmente confrontá-las.

Essa ambiguidade permitiu ao país tocar sua experiência apesar das pressões internacionais de nações vizinhas, que viam seus cidadãos cruzarem a fronteira para consumir ou comprar maconha na Holanda, e dos EUA, que até pouco tempo atrás eram o principal artífice da política global de proibição de drogas e viam essas medidas como rebeldia.

Trata-se de uma série de decisões baseadas em pragmatismo e tolerância, a partir de recomendações feitas por órgãos consultivos e autoridades, já em 1969, de que o consumo de drogas fosse tratado na esfera da saúde pública, e não da Justiça criminal.

Eles ainda classificaram os psicoativos ilegais entre aquelas de "risco inaceitável", como a heroína que logo inundaria as ruas de Amsterdã e Roterdã, e aquelas de "risco aceitável", caso reservado à maconha.

Marcelo Justo - 21.set.2011/Folhapress
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O "coffeeshop" Mellow Yellow, fechado no início deste ano em Amsterdã

A decisão de tirar o foco da repressão policial da venda e consumo de maconha, vinda da própria procuradoria pública, foi baseada na crença de, assim, seria possível afastar usuários da erva do mercado negro por onde circulavam outras drogas, cujo consumo implicava em riscos considerados "inaceitáveis".

Foi isso o que permitiu que cenas discretas, mas conhecidas, de venda de maconha em casas de show e centros de juventude fossem praticamente ignoradas pela polícia. Essa permissividade está na origem do surgimento dos "coffeeshops" já no início dos anos 1980.

Para manterem suas licenças, essas lojas teriam de rezar uma cartilha: nada de propaganda, nada de drogas pesadas, nada de tráfico, lixo e barulho, nada de vender para menores de idade nem de comercializar porções diárias acima de 30 gramas por pessoa —logo reduzida para 5 gramas.

Por outro lado, viveriam o cotidiano de um paradoxo: enquanto a venda e o uso de maconha são tolerados, mas é proibido produzi-la. É o chamado "back door problem" (ou problema da porta de trás), em que a maconha entra ilegal pela porta de serviço dos "coffeeshops", e sai legalmente no bolso do consumidor.

Esse contrassenso produziu a primeira forte artilharia contra o modelo holandês: a produção de maconha estaria fortalecendo organizações do crime organizado, que teriam tomado a frente do negócio de fornecer maconha para esses estabelecimentos e para os países vizinhos. Outro problema, recorrente e muito pulverizado, era a reclamação de vizinhanças dessas lojas sobre distúrbios, barulho e lixo.

Ao longo de quase 40 anos, essa política nunca contou com a simpatia dos conservadores, que não tinham peso suficiente no parlamento para ameaçá-la. Mudanças na constelação política da Holanda, no entanto, enquadraram os "coffeeshops" para que se tornassem clubes privados de uso apenas para holandeses.

A medida foi retirada no final de 2012 por promover o comércio clandestino de drogas, gerando ainda mais distúrbios para os vizinhos dessas lojas.

Essas medidas foram posteriormente revertidas, dando lugar a outras como a proibição de "coffeeeshops" a menos de 250 metros de instituições de ensino e a tentativa de colocar tipo de maconha mais potentes em THC na lista de drogas de "risco inaceitável".

Ao mesmo tempo, a administração dos "coffeeshops" passou a ser municipal, o que permitiu que várias cidades fronteiriças simplesmente os proibissem.

Em todo o vaivém da política holandesa que pautou os questionamentos e restrições à política atual, o papel da sociedade civil se mostrou crucial em manter os coffeeshops de pé, bem como uma série de estudos que apontaram, por exemplo, que eram quase idênticos os padrões de uso (idade de início, frequência e quantidade) em Amsterdã e em San Francisco, nos EUA, onde comércio e consumo eram criminalizados.

Outras pesquisas demonstraram que a premissa holandesa parecia surtir efeito, uma vez que o uso de drogas pesadas entre jovens holandeses está abaixo da média europeia.

Resta saber quais desafios serão impostos após as eleições de março: a regulação de toda a cadeia produtiva da maconha, como fizeram vários Estados americanos, acabando com o "problema da porta de trás", ou mais restrições ainda aos estabelecimentos-símbolo da ambiguidade que permitiu a esta política existir.


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