Folha de S. Paulo


Após perder família em ataque aéreo, iraquiano enterra parentes no quintal

RESUMO Abdalrhman Alibrahim, 19, perdeu o pai, a mãe e o irmão mais novo em um ataque aéreo da coalizão liderada pelos EUA contra o Estado Islâmico em Mossul, capital da facção terrorista.

Ele e o irmão mais velho, de 21 anos, sobreviveram ao bombardeio e foram obrigados a enterrar a família no quintal da casa da avó. Desde o final do ano passado os ataques aéreos em Mossul cresceram de forma acelerada e o número de vítimas civis disparou. Só nos primeiros 20 dias de janeiro, 344 não combatentes foram mortos pelos ataques da coalizão em Mossul. Esse número corresponde a mais que o dobro de todas as mortes contabilizadas por bombardeiros em novembro e dezembro.

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No começo, achei que era um sonho. Quando os primeiros pedaços de concreto caíram sobre minha cama, me cobri e acho que voltei a dormir por alguns segundos. Eram seis da manhã de uma sexta-feira.

Estava frio e me lembro que não havia nada a fazer naquele dia que não fosse dormir e esperar pelo fim da guerra. Acho que a poeira começou a me sufocar e mais pedaços de tijolo caíram sobre mim, e aí, acordei. Estava escuro e eu não conseguia entender o que acontecia.

Yan Boechat/Folhapress
Abdalrhman Alibrahim, 19, no quintal onde teve de enterrar sua família, em Mossul
Abdalrhman Alibrahim, 19, no quintal onde teve de enterrar sua família, em Mossul

Gritei pelo meu pai, pela minha mãe e ninguém respondeu. Aí gritei pelo meu irmão mais velho, que dividia o quarto comigo. "Adnan, Adnan, você está ai?" Ele demorou um pouco e então me respondeu. Pelo som das vozes nos encontramos em meio aos escombros.

Estávamos tentando sair dali, mas não conseguíamos. Parte do teto tinha caído e as paredes fecharam o acesso do nosso quarto para a sala. Um vizinho começou a gritar por nós e nos tirou. Até agora não sei como saímos de lá.

Corremos para a casa de um tio meu, ainda de pijama, com o dia amanhecendo. Meu irmão tinha um ferimento na perna e eu alguns poucos arranhões. Olhamos para trás e vimos nossa casa e a de dois vizinhos destruídas.

Ficamos na casa de meu tio por 15 minutos e depois corremos para uma outra casa, mais afastada. Ainda ouvíamos os aviões sobrevoando nosso bairro e ficamos com medo de sermos atacados novamente.

Quando cheguei à casa da minha avó nós já tínhamos certeza de que havia sido um ataque aéreo. As casas estavam destruídas de uma maneira que só um ataque aéreo é capaz de destruir.

Morteiros, RPGs [granadas propelidas por foguetes] e mísseis não seriam capazes de fazer aquilo. Até hoje não conseguimos entender por que fizeram isso. Nunca tivemos relação com o Estado Islâmico. Nada, nem nenhum parente nosso se envolveu com eles.

Ao longo dos mais de dois anos em que eles estiveram aqui, mal saíamos de casa. Eles bombardearam três casas de pessoas que não tinham nenhuma relação com o EI. Das 23 pessoas que estavam ali naquele dia, só cinco sobreviveram.

A gente ainda se fazia essas perguntas quando meu tio disse que encontraram meu pai, minha mãe e meu irmão menor. Mas ele não nos disse que estavam mortos. "Vão tirá-los de lá em breve, não se preocupe".

Minha única preocupação era com meu pai. Na noite anterior ele foi para o andar de cima da nossa casa assistir a um jogo do Real Madrid. Ele adorava o Real Madrid e com as Forças Iraquianas se aproximando, os homens do Estado Islâmico já não controlavam quem via televisão ou não.

Ele convidou meu irmão e eu para vermos o jogo, mas nós não quisemos. Minha mãe e meu irmão mais novo dormiam na cozinha desde que a guerra começou. Nós achávamos que a cozinha era o local mais seguro.

Ficava na parte de trás da casa e seria menos suscetível aos carros-bomba. Eu e meu irmão nunca conseguimos dormir lá, gostávamos do nosso quarto e acho que isso nos salvou.

Entrei em choque quando os corpos chegaram à casa da minha avó. Estavam todos mortos. Minha família estava morta. Não consegui vê-los. Não conseguir olhar para os rostos deles mortos. Me disseram que minha mãe e meu irmão foram encontrados como se estivessem dormindo, sem nenhum ferimento. Acho que morreram sufocados, não sei.

Meu pai, disse meu tio, estava se lavando para fazer a primeira oração do dia. Ele sim estava muito machucado. Não me contaram os detalhes, mas acho que ele deve ter se ferido muito, porque estava no andar de cima.

Não sei, não queria vê-los mortos, por isso não sei. Acho que ia ser muito para mim.

Conseguiram retirá-los da nossa casa por volta das 14h. Havia muito tiroteio naquela hora e muitas bombas estavam sendo despejadas por aqui. Os homens do Estado Islâmico ainda resistiam, mas já não eram muitos.

A maioria já tinha cruzado o rio. Mas os aviões, os aviões não paravam. Achei que iam nos atacar novamente. Foi assim que decidimos enterrá-los aqui no quintal mesmo. Seria impossível ir a um cemitério em meio àquela batalha.

Os vizinhos trouxeram pás, picaretas e começaram a cavar as covas onde minha avó tinha uma pequena horta e debaixo de algumas árvores. Decidimos enterrar mais cinco primos meus que moravam nas casas em volta e morreram também.

Nem chegamos a rezar diante dos corpos. Estávamos com medo de que os pilotos vissem uma aglomeração de pessoas e nos bombardeassem novamente. Colocamos os corpos nas covas e os enterramos com pressa.

Às 16h tudo já estava acabado. Apoiei uma pedra sobre cada túmulo, para não me esquecer onde minha família está no jardim. Minha mãe, meu pai e meu irmão mais novo estão perto do muro, protegidos por duas árvores, Meus primos estão mais próximos da cozinha.

Toda vez que cruzo este quintal eu choro. Choro de saudade, de tristeza e de raiva. E me pergunto: Por que eles fizeram isso com a gente?

Será que eles não têm informação de quem é Estado Islâmico ou não? Nossas casas nunca foram usadas por eles, deveriam saber que éramos só pessoas comuns lutando para sobreviver a esse pesadelo. Quero saber o que aconteceu e quero pedir indenização pelo que fizeram conosco.

E pensar que nossa última noite foi tão boa. Meu pai estava feliz e planejava fazer uma viagem até Istambul conosco para comemorar que havíamos sobrevivido a essa guerra. Estávamos felizes porque sabíamos que o Exército chegaria logo, que o pior havia passado. Hoje eu acho que o pior ainda está por vir. Não sei como será minha vida sem minha família.


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