Folha de S. Paulo


Somália elege novo presidente em pleito histórico marcado por fraudes

A Somália elegeu nesta quarta-feira (8) como presidente Mohamed Abdullahi Farmajo, avançando na expectativa de instaurar seu primeiro governo integralmente funcional em 25 anos.

Farmajo, que tem cidadania americana e já ocupou o cargo de primeiro-ministro, tomou posse após o titular da Presidência, Hassan Sheikh Mahamud, reconhecer sua derrota em segundo turno de votação.

"Fizemos história, tomamos este caminho para a democracia e agora quero parabenizar Mohamed Abdullahi Farmajo", disse Mahamud.

Feisal Omar/Reuters
Somalia's newly elected President Mohamed Abdullahi Farmajo addresses lawmakers after winning the vote at the airport in Somalia's capital Mogadishu, February 8, 2017. REUTERS/Feisal Omar ORG XMIT: GGGAFR115
O novo presidente da Somália, Mohamed Abdullahi Farmajo, discursa para parlamentares

A eleição desta quarta foi considerada como um "marco histórico" em um país marcado por crises crônicas, mas também foi um dos eventos políticos mais fraudulentos da Somália.

E isso não é pouca coisa, considerando que o país é classificado pela Transparência International, organização mundial de combate à corrupção, como o mais corrupto do mundo.

Pesquisadores somalis estimam que pelo menos US$ 20 milhões (R$ 62 milhões) trocaram de mãos durante a campanha eleitoral.

Segundo vários analistas, o processo todo vem sendo tão corrompido que o grupo militante Al Shabaab, uma das organizações islâmicas mais perigosas do mundo, nem sequer está tentando atrapalhar a eleição, já que o mercado livre de corrupção faz os militantes parecerem quase honestos em comparação.

"Esta eleição vem sendo fantástica para o Al Shabaab", comentou Mohamed Mubarak, diretor de uma organização somali de combate à corrupção. "O governo perde ainda mais legitimidade e o Al Shabab ganha a chance de comprar um lugar nele!"

Há décadas o mundo vem injetando mais sangue e dinheiro na Somália que em praticamente qualquer outro país, com a exceção do Iraque ou Afeganistão. A disfunção política somali causou sofrimento e mortes em escala épica, e os problemas do país tendem a não respeitar suas fronteiras.

Oficiais militares americanos, europeus e africanos dizem que os problemas da Somália, que vão do terrorismo à pirataria, não podem ser solucionados unicamente pela força. A resposta, eles dizem, seria o governo da Somália começar a funcionar como tal e oferecer uma alternativa ao caos.

Antes mesmo de esta eleição ser marcada por corrupção estarrecedora, a paciência já estava se esgotando. Agora, com o presidente dos EUA, Donald Trump, transmitindo a mensagem de "a América em primeiro lugar", muitos diplomatas e agentes humanitários que há anos trabalham para tentar resolver os problemas da Somália receiam que o país esteja na mira de Trump.

O presidente incluiu a Somália entre os sete países cobertos por sua proibição de ingresso nos EUA, e alguns temem que ele suste o envio de assistência.

Muitos especialistas sobre a Somália acham que isso apenas desestabilizaria o país ainda mais, alimentando o caos que o converteu em um risco global de terrorismo. E assistentes humanitários dizem que este seria um momento difícil para cortar o envio de ajuda à Somália, porque o país pode estar se dirigindo a mais uma fase de fome generalizada.

AL SHABAAB NA SOMÁLIAGrupo extremista islâmico domina região do país

'ESTADO FAJUTO'

A Somália vem cambaleando de crise em crise desde 1991, quando o governo central se desintegrou, líderes militares de clãs fragmentaram o país e uma fome generalizada se instalou.

Desde então, combinações diversas de líderes militares, tecnocratas e islâmicos foram reconhecidos como sendo o governo oficial, apesar de não governarem sobre muito território, oferecerem qualquer serviço público nem garantirem a segurança nacional.

"O governo somali não possui autoridade, não tem o apoio da população, não exerce monopólio sobre a violência", disse um ex-ministro do planejamento e atual candidato a presidente, Abdirahman Abdishakur Warsame. "É um Estado fajuto."

Alguns anos atrás, as principais fontes de assistência à Somália –Estados Unidos, Reino Unido, União Europeia, Suécia e Itália– estudaram um plano para promover eleições diretas.

Vários diplomatas ocidentais disseram que sentiram pressão de seus países de origem para mostrar que a Somália estava fazendo progresso, depois de tanto dinheiro ter sido investida nela.

Mas a ameaça do Al Shabab fez com que fosse difícil promover eleições diretas em muitas partes do país, então os apoiadores ocidentais apostaram em um processo eleitoral mais limitado, baseado nos clãs tradicionais somalis.

Eleições corruptas baseadas no sistema de clãs não constituem novidade no país. De acordo com vários pesquisadores, quando o presidente Hassan Sheikh Mohamud foi eleito, em 2012, muitos líderes de clãs receberam propina de US$ 5.000 (R$15,6 mil) para escolher o representante do clã no Parlamento.

Desta vez, contudo, em vez de os líderes dos clãs escolherem todos os deputados, diplomatas ocidentais defenderam um processo mais amplo e inclusivo pelo qual cada um dos 275 membros da câmara baixa do Parlamento seria escolhido por convenções de clãs, com 51 delegados em cada convenção.

Diplomatas ocidentais acharam que a exigência de 51 votos para definir cada vaga no Parlamento dificultaria o pagamento de subornos. Hoje eles admitem que se equivocaram.

Michael Keating, líder da missão da ONU na Somália, argumenta que e a eleição na Somália não deve ser julgada segundo os mesmos padrões que uma eleição em um país estável.

Ele disse que, embora a corrupção "evidentemente seja um problema grave", o processo eleitoral atual é mais legítimo que outros anteriores, tendo produzido mais deputadas mulheres e alguma reconciliação entre clãs.

Mesmo assim, ele disse: "Não estamos andando por aí dizendo que foi fantástico. Não foi."

Tradução de CLARA ALLAIN


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