Folha de S. Paulo


Donald Trump pode ser oportunidade para autocratas de todo o mundo

Kim Jong-un poderia parecer um ator improvável na disputa global para ficar de bem com o novo presidente americano, dadas as ameaças implícitas do líder norte-coreano, como a de lançar mísseis nucleares contra os EUA, feita no dia de Ano-Novo.

Mas Kim aparentemente vê no presidente Donald Trump "uma boa oportunidade para alcançar uma espécie de meio-termo com o novo governo americano", disse em entrevista à CNN na semana passada o desertor mais graduado da Coreia do Norte, Thae Yong-ho.

Nicholas Kamm/AFP
O presidente dos EUA, Donald Trump, discursa antes de empossar o secretário de Estado, Rex Tillerson
O presidente dos EUA, Donald Trump, discursa antes de empossar o secretário de Estado, Rex Tillerson

O "namoro" entre o presidente Vladimir Putin da Rússia e Donald Trump é o exemplo mais destacado de uma tendência que varreu o mundo, instilando nova esperança de que os EUA sejam amigos de homens-fortes em países como Filipinas, Turquia ou Egito, e entre nacionalistas de muitos outros lugares que pretendem seguir as pegadas de Trump e adquirir poder político.

Muitos parecem ver um governo Trump como uma oportunidade de se envolver com uma liderança de mentalidade semelhante, com objetivos nacionalistas. Outros podem esperar um alívio das críticas sobre seu histórico de direitos humanos ou tendências autoritárias. Alguns, como Kim e Putin, podem ver uma oportunidade de ampliar seus objetivos nacionais em uma nova ordem geopolítica.

O historiador Timothy Garton Ash, escrevendo em "The Guardian", chamou o governo Trump de "uma nova era de nacionalismo" em que "os nacionalistas estão mostrando uns aos outros o polegar erguido trumpiano, através dos mares".

O presidente filipino, Rodrigo Duterte, que chamou o ex-presidente Barack Obama de "filho da puta" por causa das críticas de seu governo a a uma campanha aprovada oficialmente de assassinatos de traficantes de drogas nas Filipinas, rapidamente cumprimentou Trump por sua vitória eleitoral. O presidente filipino disse na semana passada que Trump lhe enviou uma mensagem de apoio.

Duterte, que ameaçou romper relações com os EUA, um antigo aliado, e recorrer à China em seu lugar, fez o anúncio durante uma aparição no concurso de Miss Universo em Manila. (Como Trump, que foi dono do Miss Universo até 2015, Duterte adora aparecer em público com rainhas de beleza.)

Em junho, depois que Trump disse que proibiria os muçulmanos de entrar nos EUA, o presidente Recep Tayyip Erdogan, da Turquia, pediu que o nome de Trump fosse removido das Trump Towers em Istambul. Erdogan, um islâmico, deteve ou demitiu 100 mil adversários e prendeu outros 40 mil depois de um golpe militar malsucedido no último verão.

Depois da eleição de Trump, Erdogan mudou de posição.

"Acredito que chegaremos a um consenso com Trump, especialmente sobre questões regionais", disse Erdogan neste mês durante uma reunião com diplomatas turcos.

Algumas fissuras apareceram depois da ordem de Trump sobre imigração na sexta-feira (27): Erdogan chamou a medida de "francamente perturbadora". Mas disse que ainda se encontraria com Trump em uma data não especificada e então levantaria a questão. E o nome das Trump Towers continua lá.

No Egito, o presidente Abdel-Fattah al-Sisi, que sofreu críticas dos EUA sobre o histórico de direitos humanos do país e sobre o golpe militar que o levou ao poder, parece ter aprovado a liderança de Trump.

Em dezembro, depois de um telefonema de Trump, Sisi concordou em adiar uma votação no Conselho de Segurança da ONU sobre os assentamentos israelenses.

Trump também foi elogiado por nacionalistas na Europa, onde suas mensagens anti-imigração repercutem em um continente inundado por refugiados de guerras em países como Síria e por migrantes econômicos.

O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban, aplaudiu a vitória de Trump, assim como líderes de extrema-direita como a francesa Marine Le Pen.

ORDEM MUNDIAL

Parte do entusiasmo de líderes autoritários por Trump parece estar ligada a sua inclinação declarada por derrubar a ordem mundial. Isso pode incluir repensar as alianças como a Otan ou atacar antigos problemas como a Coreia do Norte e seu programa de armas nucleares —hoje supervisionado por Kim.

Na realidade, Kim ainda está muito distante de se tornar um amigo de Trump, apesar das afirmações na semana passada feitas por Thae, o desertor norte-coreano.

As declarações antiamericanas de Kim foram beligerantes mesmo após a vitória de Trump, que reagiu a uma suposta ameaça de mísseis norte-coreanos com um post no Twitter: "Não vai acontecer!"

Isso levou Jeffrey Lewis, um especialista em não proliferação, a refletir na revista "Foreign Policy" que "Donald Trump já está nos conduzindo à guerra com a Coreia do Norte".

Entretanto, Trump sugeriu no ano passado que se fosse eleito poderia se reunir com Kim. A oferta deixou o establishment de política externa trêmulo diante do que muitos considerariam uma séria quebra de protocolo, basicamente reconhecendo o líder de um Estado que os EUA não reconhecem.

"Eu falaria com ele. Eu não teria problema em falar com ele", disse Trump em entrevista à agência Reuters em maio.

Os líderes norte-coreano e americano poderão encontrar outros campos em comum. Quando Trump assinou uma ordem executiva declarando 20 de janeiro, o dia de sua posse, um "Dia Nacional de Devoção Patriótica", as redes sociais se encheram de comparações com declarações do regime norte-coreano de ocasiões com nomes parecidos.

Mesmo com todas as palavras amigáveis, não está claro se Trump e líderes melindrosos como Erdogan e Duterte serão capazes de manter seus relacionamentos calorosos.

Em Manila, por exemplo, o apreço de Duterte pelo apoio de Trump foi condicional. Ele explicou que enviou uma resposta a Trump, por meio dos organizadores do Miss Universo, queixando-se de sua aparente exclusão da posse do americano.

"Eu disse: 'Digam a ele: Amigo, eu não fui à posse porque não fui convidado'."

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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