Folha de S. Paulo


Imigrantes africanos correm riscos em selvas latinas rumo aos EUA

Usando uma pedra, Ahmed Ali Assan raspou a lateral do caminhão porta-contêineres até fazer um pequeno buraco e, encostando a boca sedenta ao metal, aspirou sofregamente o ar.

O caminhão superlotado que transportava cem imigrantes, a maioria africanos, forçava os passageiros a se revezarem para aspirar ar fresco enquanto o veículo sacolejava pelas estradas da Nicarágua rural.

Um homem da Eritreia tinha os dedos severamente inchados, sinal de severa desidratação.

"Todos pensávamos que íamos morrer", disse o somali Hassan à Reuters, relembrando a jornada realizada no mês passado.

"Não fomos tratados com dignidade", disseo universitário Hassan, 24, que se recusou a revelar seu nome real.

Anastasia Moloney - 14.dez.2016/Reuters
O imigrante camaronês Chofong Bertran (à esq.) e dois amigos no órgão mexicano de imigração, em Tapachula
O imigrante camaronês Chofong Bertran (à esq.) e dois amigos no escritório de imigração, em Tapachula

Com o aperto das fronteiras europeias para conter o influxo de refugiados e imigrantes que cruzam o Mediterrâneo em direção ao continente, Hassan é parte de uma onda crescente de cidadãos de nações africanas que estão em busca de novas rotas para fugir da pobreza, guerra e perseguição.

Hassan pagou a um contrabandista de pessoas US$ 1.000 para que ele o guiasse na travessia por terra da América Central, em direção ao México, de onde ele espera cruzar a fronteira para os Estados Unidos. Ele teve sorte de não morrer sufocado.

Em outubro, funcionários do serviço de imigração no Estado mexicano de Veracruz encontraram quatro imigrantes mortos em um caminhão abandonado pelos contrabandistas.

NOVAS ROTAS

As rotas para a Europa se tornaram mais difíceis, disse Claudette Walls, diretora do escritório de campo da Organização Internacional para as Migrações (OIM) em Tapachula, no México.

"O que está acontecendo no Mediterrâneo é que percorrer aquela rota vem se tornando mais e mais difícil e arriscado", disse Walls. "Cruzar a América Latina e chegar ao México para de lá passar aos Estados Unidos está se tornando uma nova rota."

Muitos migrantes africanos viajam de avião ao Equador e Brasil, onde as restrições modestas à concessão de vistos facilitam a entrada na América.

Eles se unem a centenas de milhares de migrantes centro-americanos que fogem da pobreza e da violência das gangues a cada ano, e que vêm usando essa rota muito conhecida há décadas.

As autoridades de imigração começaram a perceber a chegada de migrantes africanos ao México em 2013, quando a média de chegadas era de seis pessoas ao dia, principalmente por Tapachula, cidade que fica na fronteira sul do México, com a Guatemala.

Centenas desses viajantes agora chegam a cada dia. No ano passado, entre 150 e 700 migrantes africanos chegavam por dia a Tapachula —com um total de 19 mil chegando da África e do Haiti a cada ano—, de acordo com dados do governo mexicano.

A expectativa é de que o influxo continue este ano, segundo Walls.

O México também registrou um grande influxo de haitianos, que saem de seu país em busca de uma vida melhor nos EUA. Milhares de haitianos que viviam no Brasil também estão fugindo devido à recessão econômica no país.

Os especialistas dizem também que a corrida rumo ao norte é motivada pelo desejo de chegar aos EUA e reencontrar os parentes antes da posse de Donald Trump, na sexta-feira (20).

Durante sua campanha, Trump adotou uma posição dura quanto à imigração, que inclui a promessa de construir um muro ao longo da fronteira entre EUA e México para impedir a entrada de imigrantes ilegais.

PERIGOS

Com poucos elos diplomáticos com os países da África, é difícil para as autoridades mexicanas deportar os africanos que chegam ao México de volta aos seus países.

Como resultado, muitos dos migrantes recebem um visto temporário de trânsito, que lhes dá prazo de 20 dias para que deixem o México. Na prática, isso permite que eles sigam em sua jornada na direção da fronteira com os EUA sem que as autoridades de imigração os detenham.

Como os migrantes africanos que fazem a traiçoeira passagem marítima via Mediterrâneo, que causa milhares de mortes a cada ano, a jornada pela América Latina também é perigosa.

Hassan chegou ao México em dezembro, depois de uma viagem de quatro meses que incluiu um voo da Somália ao Brasil e depois a travessia de sete outros países, de ônibus, barco e a pé. Ele já gastou US$ 10 mil até agora, e esconde os dólares que têm para a viagem em suas roupas de baixo e meias.

A maioria dos migrantes conta que em algum momento de suas jornadas foram roubados ou agredidos por gangues locais. Pagar propinas de US$ 20 ou mais às autoridades para que permitam que eles continuem suas viagens também é comum, dizem.

José Ramón Cancino, diretor de assuntos de migração na comissão de direitos humanos do Estado mexicano de Chiapas, onde fica Tapachula, disse que sua organização recebeu 3.000 queixas de imigrantes no ano passado, a maioria envolvendo extorsão e abusos policiais.

Hassan disse que ele e um grupo de migrantes da África e da Ásia foram roubados por criminosos locais armados na Costa Rica. "Eles revistaram todos nós. Até mesmo se tínhamos alguma coisa escondida na boca. Levaram tudo", disse.

"Só fiquei com os meus sapatos porque calço 43 e o ladrão calçava 41", disse Hassan, sentado no banco de um hotel econômico chamado Mama Africa, no centro de Tapachula, que se tornou um lugar popular de hospedagem para os viajantes africanos.

SELVA

A maioria dos migrantes diz que a pior parte da travessia até agora foram os seis dias em uma trilha que cruza a brecha de Darien —região montanhosa de selva dos dois lados da fronteira entre a Colômbia e o Panamá. Alguns viajantes morrem no caminho.

"Vi esqueletos na selva", disse Hassan.

Outro migrante dos Camarões, Chofong Betrand, e dois amigos camaroneses também sobreviveram à odisseia na selva.

Eles chegaram a Tapachula no mês passado. Bertrand, 21, espera concluir sua viagem no nordeste dos Estados Unidos, onde planeja se reunir com a mãe, que vive lá.

Betrand, que pertence à minoria anglófona em seu país, disse que foi aprisionado por algum tempo pelas forças de segurança nacionais.

"Queremos independência, os Camarões franceses tomam tudo para eles", afirmou o universitário. "Há conflitos. Eles não querem nos dar a independência", disse Betrand, que enfrentou uma fila de três horas diante do Instituto Nacional de Migrações mexicano para solicitar um visto de trânsito de 20 dias.

A parte mais difícil da jornada ainda está por vir. Os migrantes terão de chegar à fronteira com os Estados Unidos, e cruzá-la sem que os agentes de fronteira os detenham.

"Uma mão poderosa está nos guiando", disse Betrand. "Ninguém faz essa jornada duas vezes."

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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