Folha de S. Paulo


Leitor assíduo, Obama diz que livros o ajudaram durante a Presidência

Nenhum presidente americano desde Abraham Lincoln moldou sua vida, convicções e visão de mundo tão fundamentalmente na leitura e escritura de livros quanto Barack Obama.

Na sexta-feira (13), sete dias antes de deixar a Casa Branca, Obama sentou-se no Salão Oval para falar do papel indispensável desempenhado pelos livros em sua Presidência e sua vida –desde sua infância solitária e marcada por frequentes deslocamentos, quando "esses mundos portáteis" lhe serviam de companheiros, até sua juventude, quando os livros o ajudaram a entender quem ele era, o que pensava e o que era importante.

Yuri Gripas - 28.mar.2016/Reuters
FILE PHOTO - U.S. President Barack Obama and first lady Michelle Obama perform a reading of the children's book 'Where the Wild Things Are' for children gathered for the annual White House Easter Egg Roll on the South Lawn of the White House in Washington, March 28, 2016. REUTERS/Yuri Gripas/File Photo REUTERS PICTURES OF THE YEAR 2016 - SEARCH 'POY 2016' TO FIND ALL IMAGES ORG XMIT: POY016
Barack Obama e sua mulher, Michelle, fazem leitura do livro "Onde Vivem os Monstros" para crianças

Durante seus oito anos na Casa Branca –uma era marcada pela sobrecarga de informações, o partidarismo extremo e as reações instantâneas–, os livros foram uma fonte de ideias e inspiração para o presidente, ajudando a apreciar as complexidades e ambiguidades da condição humana.

"Numa época em que os acontecimentos são tão velozes e tanta informação é transmitida", ele disse, a leitura oferece a possibilidade de "desacelerar de vez em quando e ganhar uma perspectiva mais ampla", além da "possibilidade de colocar-se na pele de outra pessoa". Essas duas coisas, disse Obama, tiveram valor enorme para ele. "Se me fizeram um presidente melhor, não sei dizer. Mas o que posso dizer é que me ajudaram a conservar o equilíbrio ao longo de oito anos, porque este é um lugar que as coisas se sucedem rapidamente, sem parar e sem descanso."

Os escritos de Lincoln, de Martin Luther King Jr., Gandhi e Nelson Mandela foram especialmente úteis, Obama disse, "quando você busca um senso de solidariedade", acrescentando: "Nos momentos muito difíceis, a Presidência pode nos isolar muito". Há uma cópia manuscrita do Discurso de Gettysburg, escrito por Abraham Lincoln em 1863, no dormitório que leva o nome do ex-presidente, e Obama disse que às vezes, à noite, ele saía de sua sala de trabalho para ler o texto.

Como Abraham Lincoln, Obama se ensinou a ler, e também para ele as palavras se tornaram uma maneira de se definir e de comunicar seus ideais e ideias ao mundo. Na verdade, há uma luz forte que liga Lincoln, King e Obama. Em discursos como os proferidos nas cidades de Charleston e Selma, Obama seguiu o caminho desses predecessores, colocando seu domínio da linguagem a serviço de uma visão histórica abrangente que, como a deles, situa nossas lutas atuais contra o racismo e a injustiça em um contínuo histórico que revela o quanto já andamos e o caminho que ainda nos falta percorrer.

CONTEXTO EM BIOGRAFIAS PRESIDENCIAIS

As biografias de presidentes passados forneceram contexto, ajudando Obama a superar a tendência a pensar que "o que está acontecendo agora é singularmente desastroso, espantoso ou difícil", ele disse. "É útil pensar em Roosevelt tentando conduzir o país durante a Segunda Guerra Mundial."

A leitura continua a formar uma parte essencial do cotidiano de Obama. Ele recentemente deu à sua filha Malia um Kindle carregado de livros que quer compartilhar com ela –incluindo "Cem anos de solidão", "O Caderno Dourado", de Doris Lessing, e "The Woman Warrior" ("A Guerreira", em tradução livre), de Maxine Hong Kingston. E, quase todas as noites na Casa Branca, ele passava uma hora lendo tarde da noite –uma leitura profunda e ecumênica, abrangendo desde ficção literária contemporânea –o romance mais recente que ele leu foi "The Underground Railway" ("A Ferrovia Subterrânea", em tradução livre), de Colson Whitehead)– até romances clássicos e obras inovadoras de não ficção, como "Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar", de Daniel Kahneman, e "A Sexta Extinção", de Elizabeth Kolbert.

Para o presidente, esses livros eram uma maneira de ele trocar de marcha mental, para escapar da bolha da Casa Branca. Alguns romances o ajudavam a "imaginar o que se passa na vida das pessoas" em todo o país –por exemplo, Obama achou que os romances de Marilynne Robinson o colocaram em contato emocional com as pessoas que encontrou no Iowa durante a campanha de 2008 e também com seus próprios avós, naturais do meio-oeste americano, e os valores de trabalho árduo, honestidade e humildade, próprios das pequenas cidades do interior.

AUTOR DE CONTOS

Obama se ensinou a escrever quando jovem, escrevendo um diário e redigindo contos quando era organizador comunitário em Chicago; ele escrevia quando voltava para casa, depois do trabalho, inspirando-se nas histórias das pessoas que encontrava no trabalho. Muitas das histórias eram sobre pessoas mais velhas, sendo inspiradas por sentimentos de decepção e perda. "Nos meus textos não há muita coisa tipo Jack Kerouac, de jovem na estrada, fazendo descobertas", ele comentou. "São textos mais melancólicos e reflexivos."

Essa experiência reforçou o poder da empatia. Sendo ele mesmo um "outsider" (com pai queniano, que deixou a família quando Obama tinha 2 anos, e mãe do Kansas, que o levou para morar na Indonésia por algum tempo), Obama sentia empatia com muitas pessoas que conheceu nas igrejas e ruas de Chicago, que se sentiam deslocadas pelo isolamento e as mudanças, e levou a sério a observação de seu chefe de que "o que une as pessoas para compartilharem a coragem de entrar em ação para mudar suas vidas não é apenas o fato de se importarem com os mesmos problemas, mas de terem histórias compartilhadas".

Essa lição se tornaria uma das bases da visão do presidente de uma América em que as preocupações compartilhadas –sonhos simples de um emprego decente, um futuro decente para os filhos das pessoas– pudessem lançar uma ponte sobre divergências e divisões. Afinal, muitas pessoas enxergavam-se na história de Obama –uma história americana, como ele disse em seu discurso na Convenção Nacional Democrata de 2004, que não seria possível "em nenhum outro país do mundo".

Obama chegou à Presidência como escritor e em breve voltará à vida de cidadão comum como escritor, com o plano de redigir suas memórias, que serão baseadas no diário que escreveu na Casa Branca ("mas não com a disciplina que eu teria desejado"). Ele possui uma sensibilidade de escritor –a capacidade de estar no momento e ao mesmo tempo colocar-se como observador, o olhar e o ouvido de um romancista, uma voz precisa, mas elástica, capaz de deslocar-se com facilidade entre o lirismo, o vernáculo e o profundo.

Na semana passada, Obama almoçou com cinco romancistas que admira –Dave Eggers, Colson Whitehead, Zadie Smith, Junot Diaz e Barbara Kingsolver–, e não apenas conversou com eles sobre a paisagem política e midiática como também de questões profissionais deles, perguntando como estavam suas turnês de promoção de livros e dizendo que gosta de escrever o primeiro rascunho de seus textos à mão, em blocos amarelos.

Obama diz que espera no futuro utilizar o site de seu centro presidencial "para ampliar o público dos bons livros", coisa que ele já tem feito com listas regulares de livros recomendados, e incentivar a discussão pública sobre livros.

Ele disse: "Em um momento em que uma parte grande de nossa política consiste em tentar controlar o choque de culturas gerado pela globalização, a tecnologia e a migração, é mais importante que nunca o papel dos livros em unificar em oposição a dividir, engajar em lugar de marginalizar".

Tradução de CLARA ALLAIN


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