Folha de S. Paulo


Historiador vê 'ecos' dos anos 1930 em ascensão do populismo na Europa

"É muito tentador pensar no século 20 da Europa como um século de dois tempos completamente diferentes, talvez com uma prorrogação a partir de 1990."

É com essa metáfora futebolística que o historiador britânico Ian Kershaw, 73, —torcedor do Manchester United— inicia a empreitada de contar a história do continente europeu no conturbado século passado.

O primeiro de dois volumes, "De Volta do Inferno: Europa, 1914-1949", acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras e cobre os acontecimentos que vão do início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) até o estabelecimento da Europa dividida entre capitalismo e comunismo.

O segundo, que analisará a metade do século marcada pela Guerra Fria, tem publicação prevista para 2018.

Ulf Andersen - 9.set.2008/Getty Images
O historiador britânico Ian Kershaw, 73, especialista em Alemanha nazista
O historiador britânico Ian Kershaw, 73, especialista em Alemanha nazista

Renomado pesquisador da Alemanha nazista e autor de diversas obras sobre esse período da história alemã, entre elas uma biografia de Adolf Hitler (1889-1945), Kershaw queria "expandir o panorama para toda a Europa e por todo o século 20, já que a catastrófica primeira metade do século é essencial para entender como a segunda se desenvolveu", afirmou à Folha.

Em meio à Grande Depressão, nos anos 1930, a política europeia se inclinou claramente para a direita.

O discurso centrista perdeu força entre as massas empobrecidas, notadamente na Alemanha. Imperava o medo do comunismo e o anseio pela ordem, o que foi prontamente oferecido pelos políticos nazifascistas.

É possível traçar um paralelo com a atual crise do discurso moderado no continente europeu, onde cada vez mais ganham força políticos da direita populista?

"Existem certos ecos, e as ansiedades atuais são muito compreensíveis", responde Kershaw. "Mas precisamos manter em mente as diferenças em relação aos anos 1930", diz o historiador.

Ele lembra que a Europa é hoje "um continente de democracias", enquanto que naquela década "a democracia era um sistema de governo profundamente contestado" —apenas 11 países do norte e oeste europeu tinham, na época, governos considerados democráticos.

Além disso, os militares desempenham atualmente um papel pequeno na política europeia, ao contrário do período entreguerras.

"E, não menos importante, a Europa tem em seu centro uma Alemanha pacifista e internacionalista, em absoluto contraste com a Alemanha dos anos 1930."

Sob a sombra da saída do Reino Unido, o chamado "brexit", a União Europeia estaria ameaçada em seu cerne? Ian Kershaw acredita que não. Mas, se a UE se desintegrar, "a paz e a estabilidade da Europa certamente estariam mais ameaçadas do que nunca estiveram nas últimas décadas".

Stefan Wermuth - 16.jun.2016/Reuters
Nigel Farage, líder do partido populista britânico Ukip, indica anúncio anti-imigração e a favor do 'brexit
Nigel Farage, líder do partido populista britânico Ukip, indica anúncio anti-imigração e a favor do 'brexit'

ABISMO

O título do livro de Kershaw é uma referência ao período de quase autodestruição que a Europa protagonizou durante as duas guerras mundiais. Para ele, o continente "mergulhou no abismo". Não é para menos.

Se a Primeira Guerra e seus 10 milhões de mortos já haviam assombrado o planeta, os 40 milhões que perderam a vida na Segunda (1939-1945) somados ao horror do Holocausto elevaram o patamar de autodestruição a um nível nunca antes visto.

"As consequências morais de um colapso tão profundo da civilização se estenderiam pelo restante do século e além dele", escreve Kershaw.

O historiador elenca quatro fatores cruciais que motivaram a "catástrofe imensurável" que foi a Segunda Guerra: uma explosão de nacionalismo etnorracista; exigências irreconciliáveis de revisionismo territorial pós-Primeira Guerra; um agudo conflito de classes, intensificado depois da Revolução Russa (1917); e a crise do capitalismo ocasionada pela quebra da Bolsa de Nova York, em 1929.

Para ele, a paz na Europa passava pela Alemanha. Segundo Kershaw, "a sobrevivência da democracia alemã era a melhor garantia de paz e estabilidade futuras para a Europa. O que aconteceria se a democracia entrasse em colapso no país que era mais crucial para a Europa?", questiona.

De Volta Do Inferno - Europa, 1914-1949
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Com a ascensão de Hitler ao cargo de chanceler, em janeiro de 1933, a democracia estava com os dias contados na Alemanha.

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DE VOLTA DO INFERNO: EUROPA, 1914-1949
AUTOR Ian Kershaw
TRADUÇÃO Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 79,90 (568 págs.)


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