Folha de S. Paulo


Sou otimista em tempos pessimistas, diz Mário Soares em entrevista inédita

Patrícia de Melo Moreira - 30.nov.2014/AFP
Já debilitado, Mário Soares chega ao Congresso do Partido Socialista Português, em Lisboa, em 2014
Já debilitado, Mário Soares chega ao Congresso do Partido Socialista Português, em Lisboa, em 2014

Exilado pela ditadura salazarista (1932-1974), presidente de Portugal de 1986 a 1996 e advogado, Mário Soares foi uma das figuras mais respeitadas do cenário político mundial.

Ele morreu no último sábado (7) em Lisboa, aos 92 anos. Seu velório começa nesta segunda (9), com a presença de autoridades internacionais, incluindo o presidente brasileiro, Michel Temer. Seu corpo será enterrado na terça (10).

A seguir, trechos de uma entrevista inédita feita em dois momentos: na última visita do presidente ao Brasil, em 2012, e dois anos depois, na ocasião da comemoração dos 40 anos da Revolução dos Cravos.

Nela, Soares ainda sonhava com um "regime democrático, onde se respeita os direitos humanos" e discorreu sobre os rumos políticos da sociedade contemporânea.

Ele ainda comenta sobre as circunstâncias do descobrimento do Brasil, discorda que os índios brasileiros tenham sido escravizados, defende a consciência cristã do Padre Antônio Vieira e identifica-se com o sofrimento de Tiradentes.

*

Como o senhor avalia as relações entre Brasil e Portugal?

Acho que as relações estão muito bem e há uma grande unidade entre Portugal e o Brasil. Há um intercâmbio cultural intenso para desenvolver, o que já é importante. E as relações comerciais são importantes também visto que Portugal é importador dos produtos brasileiros e há muitas empresas brasileiras que investem em Portugal.

Portugal está facilitando a entrada do Brasil no Mercado Comum Europeu?

Bem, o mercado europeu é o mercado europeu. Há um mercado mundial e o Brasil tem uma posição importantíssima no mercado mundial.

O Brasil é um país produtor, um produtor agrícola industrial. É um país com comércio fluente e com uma balança comercial altamente positiva que faz inveja a Portugal, onde nossa balança comercial é altamente deficitária e negativa.

Como o Brasil deve se comportar para entrar no Mercado Europeu?

Há relações comerciais e acordos feitos entre o Brasil e o Mercado Comum. Nós, por exemplo, podemos comprar os produtos brasileiros em Lisboa livremente e correntemente.

Os tempos atuais lembram os tempos da colônia. Estes novos blocos econômicos do primeiro mundo que se formaram vão acentuar a miséria dos outros mundos?

Há países que estão em condições inaturáveis de miséria. Eu penso que o primeiro mundo, o mundo dos ricos, tem uma responsabilidade com o mundo dos mais pobres. Os mais ricos têm que auxiliar os países mais pobres para o equilíbrio e para o desenvolvimento e a sobrevivência mundial.

21.jan.2006/AFP
Mário Soares discursa em comício na campanha presidencial de 2006, em que obteve 14% dos votos
Mário Soares discursa em comício na campanha presidencial de 2006, em que obteve 14% dos votos

O mundo é composto por uma pequena minoria de países ricos e países desenvolvidos e por uma enorme maioria de povos pobres.

Há dois terços da humanidade que não mata a fome, que vive em condições deploráveis. Somos os que vivem em condições dignas. Mas para que este pequeno mundo rico possa sobreviver e possa se desenvolver é preciso que vá ao encontro do desfavorecido.

Lembro-me bem quando o saudoso papa João Paulo 2º disse há tempos essa frase: "se queres a paz vá ao encontro dos povos".

O que quer dizer, que se continua a haver povos pobres e grandes diferenças sociais entre as pessoas de outros países e outras nações isso dá origem à guerras, às explosões sociais e a violência.

Nós sabemos que, mesmo no interior dos países mais ricos, temos por exemplo, nos Estados Unidos, bolsas de imensa pobreza. O terceiro mundo também está nos países ricos, também está na América, também está no Japão e na Europa. A explosão dos índios no sul do México é um exemplo de explosão social.

Penso que é fundamental que o mundo desenvolvido vá ao encontro do mundo menos desenvolvido. Aí, este mundo menos desenvolvido vai ter condições de desenvolvimento econômico e de justiça social.

A criação do Mercado Comum Europeu surgiu para proteger o mercado dos países mais ricos.

Não, não se pretendeu e não se pretende fazer da Europa uma Europa fortaleza. Pretende-se fazer da Europa uma Europa solidária e aberta ao mundo menos favorecido da África, América Latina, etc.

O Mercado Comum Europeu criou restrições a imigrantes.

Naturalmente que houve medidas de proteção. A Europa é uma área livre de circulação de pessoas e mercadorias a este mercado do leste com uma população imensa do antigo império comunista que quer de leste a oeste entrar neste mercado de qualquer maneira e também a população do mar grego e do sul do Mediterrâneo que quer penetrar na Europa.

Por isso é preciso, naturalmente, criar algumas medidas. Mas não acredito nas barreiras e nem nos muros.

O senhor é um ser otimista.

É natural sermos otimistas em tempos pessimistas.

21.abr.1975/AFP
Mário Soares discursa a seus seguidores no estádio 1º de Maio pouco antes das eleições de 1975
Mário Soares discursa a seus seguidores no estádio 1º de Maio pouco antes das eleições de 1975

O século 20 mostrou que os intelectuais e a política não deram certo. Os intelectuais ao apoiarem o comunismo pensaram que estavam libertos do capitalismo, a caminho de uma nova ordem social com liberdade e direitos iguais. Não foi isto que aconteceu.

Não, não foi. A liturgia comunista foi um grande logro. Eu disse certa vez, que o comunismo é um embuste porque os milhões de seres humanos que acreditaram nele como uma força em direção a igualdade se iludiram.

O comunismo sempre foi uma ditadura e a supressão das liberdades sem avançar nos níveis de igualdade social.

Os países da maior igualdade social e melhor justiça social são os países nórdicos, do norte da Europa, que são países que foram dominados pela social-democracia.

Qual seria o regime próximo do ideal?

É um regime democrático onde se respeita os direitos humanos. Não só os direitos políticos, mas também os direitos sociais, os direitos da terceira geração, chamados os direitos do ambiente, o direito a paz e ao desenvolvimento.

Um regime onde as pessoas sejam respeitadas, onde se respeite o direito à diferença, esse é para mim o regime ideal, o regime democrático.

A democracia surgiu com o desmoronamento da sociedade monárquica na virada do século 18 para o 19. Há uma frase que sintetiza o espírito da democracia?

A definição clássica de democracia é a de Jefferson: o governo do povo pelo povo e para o povo. Esta continua a ser a definição clássica de democracia.

A luta política é, num certo sentido, um modo de viver-se uma espécie de aventura pessoal?

É também isto. A luta política é imbuída de certo humanismo, um humanismo crítico e revitalizador. A luta política, talvez, seja a mais nobre de todas as atividades.

15.mai.1974/AFP
Mário Soares acena a seus seguidores em Lisboa após ser nomeado chanceler em maio de 1974
Mário Soares acena a seus seguidores em Lisboa após ser nomeado chanceler em maio de 1974

COLÔNIA

Falemos da carta de 1500, de Pero Vaz de Caminha, anunciando a descoberta de uma nova terra ao Rei de Portugal a Dom Manuel.

As cartas de Pero Vaz de Caminha são um dos trechos literários mais bonitos da nossa literatura e ao mesmo tempo são o ato fundador do Brasil. É qualquer coisa de importante na história do Brasil, tanto que eu quis, ao conhecer o Brasil, trazer um exemplar verdadeiro e original da carta de Pero Vaz, quando eu era primeiro-ministro.

Isso foi na primeira vez em que eu vim ao Brasil, em 1976. Não queriam deixar eu sair com o documento de Portugal.

Eu não pude concretizar de fato, porque eu achava que a carta devia estar no Brasil e num monumento brasileiro do que estar propriamente no nosso país, embora seja de fato patrimônio português.

O Brasil não teria sido descoberto antes de 1500, ou então como se explica o Tratado de Tordesilhas em 1494?

É provável. Eu queria salientar que quando o Álvares Cabral chegou ao Brasil ele disse que "chegou ao Brasil por causa de uma tempestade e que ele ia com caravelas para a Índia e que foi desviado no Atlântico, pelos ventos elísios, e encontraram uma terra desconhecida chamada Brasil".

Nós, hoje, estamos em condição de saber e mostrar que isso não é verdade. Visto que o Brasil era do conhecimento dos navegadores portugueses antes da descoberta oficial. Porque a descoberta oficial só foi anunciada em 1500.

A verdade é que no Tratado de Tordesilhas, como você mencionou, que é de 1494, seis anos antes, os reis portugueses negociaram a inclusão do Brasil numa coisa que era considerada como mar desconhecido.

Ora, se os portugueses não soubessem que existia o Brasil já em 1494, não teriam incluído justamente em sua faixa o território do Brasil.

Beto Barata - 2.out.2000/Folhapress
A Carta de Pero Vaz de Caminha, em exposição no Congresso Nacional em outubro de 2000
A Carta de Pero Vaz de Caminha, em exposição no Congresso Nacional em outubro de 2000

Como justificar os colonizadores que catequizaram um povo que não conhecia o pecado? Como justificar a escravidão e a violência que ocorreu contra esse povo e essa Terra?

A escravatura não tem justificativa, é um crime contra a humanidade. A única justificativa que se poderá invocar é que os escravos negros que vieram da África para o Brasil foram comprados pelos navegadores portugueses e pelos comerciantes portugueses que contrataram a África.

Tem muitos africanos que escravizaram os próprios africanos. Mas a escravidão não tem justificativa. Como se sabe, os portugueses não escravizaram os índios no Brasil.

Mas há relatos, histórias de muitas tribos escravizadas.

Os índios foram mais ou menos assimilados, aliás, como é esse caldo de cultura que é o Brasil, essa mistura de índios, africanos e portugueses.

Nota-se nos textos do Padre Vieira uma fraternidade cristã em relação ao mundo novo e, ao mesmo tempo, verifica-se o pensamento mercantil do padre.

Eu tenho uma enorme admiração pelo Padre Vieira que não só foi um grande diplomata e um homem de grande cultura. Os sermões do Padre Vieira são algo de muito real e revelam um pensamento muito dantes e uma cultura muito variada. Vieira que está sepultado na Bahia, foi, como se sabe, um grande jesuíta, um defensor do índio como quase todos os jesuítas. Mas o motivo de estar escravizando os africanos ele achava na época como um fato natural. Não é uma questão grosseira de um homem que é de grande humanismo cristão e de grande humanismo católico defender a escravidão dos negros?

A obra do Padre Vieira, como "A arte de furtar" é muito contemporânea face aos escândalos mundiais que a gente assiste a todo momento.

Sem dúvida, os grandes autores têm isso de ver longe. Os grande autores universais como o Padre Vieira e muitos outros falam de um tempo que pode ter semelhanças. A história é cíclica, circular. Os autores universais são sempre atuais.

Quais são os acertos e erros de Portugal na época da colonização?

Todos os colonizadores têm atos benéficos e atos negativos, atos nefastos. A opressão é sempre algo nefasto. Identifico-me com o sofrimento de Tiradentes, com a sua revolta, porque Tiradentes foi um homem que lutou pela liberdade e que lutou pela emancipação dos povos.

Eu penso que um povo para ser livre não pode oprimir outros povos e, portanto, o que é normal nas colônias é que elas sejam emancipadas no momento próprio e se tornem nações.

Não é uma bobagem a reforma ortográfica da língua portuguesa, já que a língua é um organismo vivo, dinâmico e muda-se conforme as novas gerações?

O que é admirável na nossa comunidade é a variedade, a riqueza e as diferentes contradições. Os brasileiros tem locuções, maneiras de escrever e de falar diferente dos portugueses que enriquecem extraordinariamente a nossa língua, da mesma forma que os africanos e os portugueses.

Cada um dá o seu tributo. Eu não sou um grande purista da língua e acho que as línguas são organismos vivos e são os povos que fazem as línguas. Não sou pela uniformização, mas pela variedade e pela diversidade dentro de uma unidade.

PEDRO MACIEL é autor dos romances "A noite de um iluminado" (2016), ed. Iluminuras, "Previsões de um cego" (2011), ed. LeYa, "Retornar com os pássaros" (2010), entre outros.


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