Folha de S. Paulo


Arrogância e sobriedade se equilibram nos retratos dos presidentes dos EUA

Um fato inescapável das eleições americanas é que dentro em breve poderemos nos defrontar constantemente com o rosto de um novo presidente.

Para Donald Trump, o corolário disso é que ele, como todos os recém-chegados à Presidência, vai poder ficar na companhia dos rostos que escolher, decorando o Salão Oval com retratos de presidentes —normalmente os retratos oficiais que integram as coleções expostas na Casa Branca e na National Portrait Gallery.

As melhores dessas imagens, assim como as de valor artístico menor, oferecem lições históricas reveladoras para Trump, como pode atestar uma visita recente aos retratos expostos nos dois locais.

A lição mais óbvia está no grau de diferença entre esses retratos e a imagem do próprio Trump: a partir de 13 de janeiro, o museu vai começar a expor temporariamente um retrato de Trump tirado de seu acervo —uma foto de 1989 feita em estúdio por Michael O'Brien.

Tyrone Turner/The New York Times
Funcionário da National Portrait Gallery, em Washington, com foto de Donald Trump tirada em 1989
Funcionário da National Portrait Gallery, em Washington, com foto de Donald Trump tirada em 1989

Feita numa época em que o presidente eleito era famoso como magnata imobiliário poderoso e bilionário, a foto virou a imagem de capa de seu livro autobiográfico "Trump: Surviving at the Top".

A imagem parece ser uma brincadeira leve com a pintura de 1964 "O Filho do Homem", em que o artista belga se retratou em pé contra o pano de fundo de um céu cinzento e nublado, vestido de fraque burguês e chapéu-coco, com uma grande maçã verde boiando diante de seu rosto.

É uma imagem que fala de repressão, conflito, mistério, elementos que a imagem de O'Brien arranca e joga longe. O céu é azul forte. Um Trump irreverente, com 40 e poucos anos, rosto juvenil, cabelos ainda não oxigenados, está com uma mão sobre o quadril. Com a outra mão, atira no ar uma maçã vermelha —a ideia é que ela seria a Grande Maçã, que seria seu brinquedo.

Seu sorriso autoconfiante nos revela que ele vai pegar a maçã quando cair, mesmo sem precisar olhar. (Trump não se envolveu na exposição de imagens do museu.)

Os retratos expostos no Salão Oval são em grande medida inacessíveis ao público. Mas é possível ver os que estão em outras partes da Casa Branca durante visitas públicas, enquanto você é conduzido rapidamente por corredores pouco iluminados, passando por salões de recepções fechados ao público por cordões de isolamento.

As obras de arte estão distantes e só podem ser vistas de relance, e, dado o pouco reconhecimento visual que temos da maioria dos presidentes passados (por acaso você reconheceria Millard Filmore se topasse com ele?), os retratos poderiam ser de qualquer pessoa.

Mas é possível chegar perto dos mesmos rostos, em alguns casos pintados pelos mesmos artistas, como fiz na National Portrait Gallery, a pequena distância a pé da Casa Branca, numa mostra do acervo permanente intitulada "America's Presidents".

A impressão inicial é de uniformidade. Nossos líderes foram brancos (até 2008), heterossexuais (pelo que sabemos) e homens.

O que os diferenciou foram fatores impalpáveis: personalidade, norte moral, QI, todos difíceis de discernir e interpretar em um retrato formal. (Ulysses S. Grant parece bastante resoluto na tela, mas um visitante que o encontrou durante seus anos na Casa Branca escreveu sobre "sua perplexidade tristonha, como um homem confrontado com um problema cujos fatores ele não entende".)

Outra impressão: esses retratos, em sua maioria, não são obras-primas, o que não quer dizer que não sejam interessantes.

GEORGE WASHINGTON

E alguns deles são excepcionais, como o esboço a óleo polido de George Washington feito por Gilbert Stuart, que se tornaria a fonte de muitas outras imagens, incluindo a de Washington com expressão azeda, olhando de soslaio, vista na cédula de US$1.

O desenho de Stuart não está exposto agora, mas outros retratos, sim. E um deles, cedido pelo Crysta Bridges Museum of American Art, de Bentonville, Arkansas, foge da média.

Pintado em 1782 por Charles Wilson Peale, é um retrato de três quartos de um George Washington pré-presidencial, quando exercia o papel de comandante-em-chefe do Exército Continental, que serviria de aquecimento para o exercício da Presidência.

Tyrone Turner/The New York Times
Retrato de George Washington pintado em 1782 por Charles W. Peale é exibido na National Portrait Gallery
Retrato de George Washington pintado em 1782 por Charles W. Peale, na National Portrait Gallery

Washington acaba de vir do campo de batalha, que está atrás dele, mas seu uniforme cor creme, com faixa de seda azul na cintura, está impecável. Está descontraído, com uma mão no quadril e outra apoiada em um canhão.

Ele exibe um sorriso muito leve, comedido, sagaz, como se uma ideia que acaba de lhe vir à cabeça, possivelmente sobre você, o tenha feito sorrir. Uma comparação com o retrato de Trump não seria irrealista, e isso é algo sobre o qual vale refletir.

Os americanos pregam o populismo, mas, na hora de votar, frequentemente apostam em líderes com dinheiro e algum tipo de fama.

Washington —líder militar célebre, agricultor rico, proprietário de centenas de escravos— tinha as duas coisas. Foi também esse o caso de nosso terceiro presidente, Thomas Jefferson, também dono de escravos.

JEFFERSON

Ele não fez de conta que era um homem do povo, no sentido de misturar-se ao povo, mas redigiu um dos mais importantes documentos igualitários do mundo. Percebem-se as contradições em um retrato de 1786 pintado quando ele foi o ministro dos Estados Unidos junto à França.

No retrato feito por Mather Brown, Jefferson é todo peruca bufante e babados, aparentemente emoldurado em uma bolha elitista. Mas no ano em que a tela foi criada, uma das leis de direitos civis mais importantes que Jefferson redigiu, o Estatuto de Liberdade Religiosa de Virgínia, que proibiu a discriminação contra a prática de qualquer religião, foi promulgada em lei nos Estados Unidos.

Os conceitos quanto à aparência que o poder presidencial deve ostentar e como deve agir mudam com as eras, os artistas e as personalidades (e com a avaliação dos líderes feitas por estudiosos, que são revistas constantemente).

JACKSON

Andrew Jackson, eleito em 1828, arquitetou uma espécie de revolta populista. Jogando com sua origem interiorana sulista, sua carreira militar e o desdém que tinha pelo establishment político, ele tratou a política como uma espécie de arte cênica.

Jackson desempenhava o papel do Sr. Destino Manifesto, um fanfarrão dominador que tomava o que lhe apetecia —terras no oeste do país, vidas de indígenas americanos— em nome do povo.

Jackson apresentava um show cheio de garra. Ele ameaçou linchar um adversário irritante, e, quando o Congresso desaprovou uma indicação que ele queria fazer a um cargo, Jackson gritou: "Vou acabar com eles!" (os parlamentares). Seus fãs adoravam.

E ele encontrou o artista certo para pintá-lo: o topa-tudo Ralph E.W. Earl, que retratou Jackson em tamanho natural, com os cabelos arrumados com elegância e trajado como um rei, ou possivelmente como Liberace, numa capa forrada de vermelho e que descia até o chão.

MANIPULAÇÃO

Mais tarde, outros presidentes também se beneficiariam da manipulação visual. Um retrato pintado em 1859 pelo habilidoso George P.A. Healy transformou John Tyler, que ocupou a Presidência por pouco tempo e a quem faltavam carisma e astúcia executiva, em um nobre astro romântico.

O dom que o artista possuía de lisonjear seus retratados foi recompensado com encomendas para pintar quatro presidentes adicionais, o último dos quais foi Abraham Lincoln.

O retrato que Healy criou de Lincoln foi concebido na década de 1860, mas executado 20 anos mais tarde. A figura famosamente alta e desajeitada do presidente está sentada numa cadeira, com as pernas cruzadas e o queixo na mão, pensando profundamente. É uma pose que o glamuriza.

Este Lincoln é jovem, de faces rosadas e cabelos arrumados, mais ou menos bonitinho. Para vê-lo como ele realmente estava perto do final é preciso procurar a foto de "chapa rachada" feita por Alexander Gardner dois meses antes de sua morte (há uma cópia moderna na National Gallery). Com apenas 56 anos de idade, ele evidentemente já estava profundamente desgastado.

Lincoln possuía um dos grandes rostos, uma das grandes presenças. Era impossível retratá-lo como qualquer coisa senão extraordinário. Líderes menos impressionantes precisavam de uma ajudinha da arte.

Rutherford B. Hayes, o presidente de número 19, não recebeu muita ajuda. Na eleição furiosamente disputada de 1876, ele foi vitorioso pela margem mais estreita possível, e o título malicioso de "Sua Fraudulência" o perseguiu ao longo de seu mandato. Em seu retrato pintado por Eliphalet Andrews, ele se mostra um homem preocupado, angustiado.

O robusto Grover Cleveland, com seu rosto de buldogue, recebeu uma ajudinha do brilhante retratista Anders Zorn, que o converteu em natureza morta e fez das pinceladas virtuosísticas o tema real da pintura.

A Presidência de Warren G. Harding foi marcada pela corrupção; cada aspecto dela parecia estar à venda. Pior ainda, o domínio que Harding tinha dos assuntos de Estado era zero. (Um ouvinte descreveu um discurso dele como "um exército de frases pomposas que se deslocam por uma paisagem em busca de uma ideia".)

Dizia-se que o Partido Republicano o escolhera como candidato porque "ele tinha aparência de presidente". Se era verdade, podemos supor que seu retrato feito por Margaret Lindsay Williams e que está no Smithsonian define a marca registrada executiva vencedora em 1923; Mike Pence se assemelha a ela nos mínimos detalhes.

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Os retratos oficiais de presidentes são uma forma de publicidade; logo, de invenção.

Calvin Coolidge passou muito tempo em seu gabinete fazendo pouca coisa e dizendo nada. Mas, em um retrato criado por Joseph E. Burgess, ele é um pugilista pronto para se lançar em combate.

Uma pintura inacabada de Franklin Delano Roosevelt feita em 1945 por Douglas Chandor é mais notável por incluir estudos das mãos expressivas do presidente, segurando lápis.

Foram essas as mãos que redigiram o New Deal. Foram também elas as mãos que assinaram a ordem de encerrar cidadãos americanos de origem japonesa em campos de encarceramento durante a Segunda Guerra Mundial, um ato racista que, para alguns, é ecoado no chamado atual pela proibição de ingresso de muçulmanos nos EUA.

Quanto a imagens presidenciais mais recentes, elas não são grande coisa: basicamente, figuras pretensiosas.

Richard Nixon tirou a sorte grande ao figurar em um retrato pintado por Norman Rockwell em 1968 que o converte em um sujeito normal e simpático. Bill Clinton não teve sorte igual com uma pintura de Chuck Close, de 2006, que o mostra como palhaço sorridente.

Talvez o retrato de Clinton represente um novo tipo de retrato presidencial, algo feito para uma época em que política e entretenimento são inseparáveis, em que é impossível distinguir heróis de canalhas. A imagem promocional de Trump jogando a maçã no ar, de 1989, se enquadra nesse espaço.

Alguns desses retratos serão divertidos para Trump espalhar à sua volta: James Buchanan parecendo um dândi, Chester Arthur com suas costeletas bombásticas.

Mas as imagens dos presidentes também formam uma espécie de documento nacional: uma história pictórica da arrogância, agressão, perseguição e confusão moral americanas, juntamente com uma história de sobriedade, autodisciplina, ação justa e contenção, que a equilibra.

E se, como foi relatado, Trump não tem paciência para ouvir briefings de seus assessores, ele deveria considerar a possibilidade de comunicar-se com seus predecessores distantes.

Com Lincoln, que, em seu segundo discurso de posse, prometeu governar "com más intenções em relação a ninguém, com caridade em relação a todos". Com Washington, que, pelo menos segundo o mito popular, declarou como preceito moral: "Não posso contar uma mentira". E com John Adams, seu sucessor, o primeiro residente na Casa Branca, que, ao instalar-se nela, escreveu à sua mulher, Abigail, palavras que foram uma injunção para o futuro: "Que ninguém senão homens honestos e sábios jamais governe sob este teto".

Tradução de CLARA ALLAIN


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