Folha de S. Paulo


Opinião

Conflitos no Oriente Médio podem alterar balança de poder na região

Autoridades da Rússia, Irã e Turquia estavam se preparando, alguns dias atrás, para uma reunião trilateral de ministros da Defesa e das Relações Exteriores, em Moscou, a fim de discutir a situação da Síria depois de Aleppo.

Os colegas norte-americanos dos ministros foram convidados? Não. Um debate cuja base é a realpolitik não seria lugar para procrastinadores injustificadamente otimistas que, além disso, estragariam o triunfo da Rússia e do Irã, que estão saboreando a destruição da Aleppo rebelde e o resgate do que resta do Estado governado por Bashar al-Assad, seu cliente sírio.

A Turquia, sejamos justos, estava mais concentrada na realpolitik do que em triunfos. Ancara teve de abandonar seu apoio aos rebeldes sunitas que tentavam derrubar o regime de Assad, e se aproximar da Rússia e do Irã a fim de impedir que combatentes curdos da Síria se aliem aos insurgentes curdos da Turquia e consolidem uma entidade capaz de autogoverno abarcando territórios dos dois países.

De qualquer forma, não é fácil escapar à carnificina na Síria. Nos dias que antecederam a reunião de ministros, Andrei Karlov, embaixador russo à Turquia, foi morto a tiros por um policial turco, que gritou "não esqueça Aleppo!"

O atentado com um caminhão contra um mercado de Natal em Berlim, na mesma noite, expôs com que facilidade o terror pode atacar.

Mas é notável, dada a maneira pela qual a Força Aérea de Putin eviscerou os rebeldes sunitas da Síria (em lugar dos extremistas do Estado Islâmico), que a Rússia tenha sofrido poucas represálias.

Sim, além das atrocidades dos terroristas em Paris e Nice, Bruxelas e Istambul, um jato de passageiros russo foi derrubado por uma bomba sobre o Sinai, pouco depois que a Rússia interveio na Síria.

As autoridades europeias dizem que o avião russo não era o alvo original. Isso pode mudar, agora. Putin disse que o assassinato de Karlov tinha por objetivo sabotar "o processo de paz na Síria" —uma declaração inacreditavelmente cínica que faz pensar que a Rússia, bem como o Ocidente, provavelmente terão mais ocasiões para se lembrar de Aleppo.

Contemplando 2017, Rússia e Irã podem, ainda assim, considerar que tiveram um bom ano, causando dificuldades aos seus adversários no Oriente Médio —e que o Ocidente, e seus aliados na região, está em tumulto, o que é passível de exploração.

O Kremlin parece ter escapado incólume da intrusão de seus hackers na eleição dos Estados Unidos. Está também conseguindo algum sucesso em dividir a Europa e criar um polo democrático antiliberal dentro da União Europeia. E o presidente Putin tem um novo admirador, na pessoa do presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump.

O presidente Recep Tayyip Erdogan, da Turquia, e o presidente Abdel Fatah al-Sisi, antigo comandante do Exército que agora preside o Egito, já são fãs de Putin. Binyamin Netanyahu, o primeiro-ministro direitista de Israel, cultiva o líder russo.

Mohammed bin Salman, o jovem príncipe herdeiro adjunto que na prática governa a Arábia Saudita, desenvolveu o que um funcionário de governo árabe descreve como "relação funcional" com Putin.

COLAPSO

Irritados com o que percebem como fraqueza do governo de Barack Obama e desiludidos com a União Europeia, esses pilares de influência ocidental no Oriente Médio estão em risco de colapso.

Depois do caos das derrubadas de governo em 2011 e 2013, o Egito se transformou em um Estado de segurança que vive sob linha dura. No governo de Sisi, as decisões não são influenciadas pela política e os serviços de segurança têm a última palavra. Um desentendimento com a Arábia Saudita, seu principal patrono financeiro, deixou a economia do Egito vulnerável.

A Turquia, membro da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan), enquanto isso, está se voltando ao leste, enquanto Erdogan submete as instituições do país a um teste destrutivo nos expurgos que se seguiram ao fracassado golpe de julho e em seu caminho para um governo despótico. Nos dois países, as cadeias estão lotadas.

Israel parece destinado a encerrar de vez qualquer discussão sobre um Estado palestino independente e pode anexar não só os assentamentos judaicos mas a maior parte da Cisjordânia, tirando vantagem da seleção de assessores simpáticos aos assentamentos por Trump.

Mas o disparo final do presidente Obama —a abstenção norte-americana na votação da resolução de condenação aos assentamentos pelo Conselho de Segurança da ONU, na semana passada— e a reafirmação pelo secretário de Estado John Kerry do apoio dos Estados Unidos aos direitos dos palestinos e à segurança de Israel servem como lembrete de que a maior parte do mundo considera ilegal a colonização de terras palestinas pelos israelenses.

O plano do príncipe Mohammed para reformar a Arábia Saudita e libertá-la da dependência quanto ao petróleo pode mudar o curso de seu país. Mas fracassará a menos que ele consiga tomar o controle da educação aos líderes religiosos wahhabitas que fomentam o fanatismo em seu país e em todo o mundo muçulmano.

O Irã xiita, rival regional da Arábia Saudita sunita, parece estar vivendo um grande momento. A vitória em Aleppo cimentou seu eixo árabe xiita de Bagdá a Beirute. Mas Trump tem Teerã na mira. Ele ameaçou revogar ou impossibilitar o cumprimento do acordo nuclear que os Estados Unidos e cinco outras potências mundiais, entre as quais a Rússia, assinaram com o Irã.

Isso favoreceria a linha dura iraniana e seu aventureirismo, e fomentaria o conflito interno do islã que define e desfigura o Oriente Médio, entre os proponentes da supremacia xiita e sunita, fornecendo-lhes álibis mutuamente reforçáveis para a guerra santa.

O califado declarado pelo Estado Islâmico no Iraque e Síria provavelmente desabará em 2017. Mas depois que a facção perder Mossul e, por fim, Raqqa, passará a recorrer a insurgências locais e terrorismo internacional. Aleppo também está pressionando os sunitas ao extremismo desesperado.

O Estado Islâmico e a Al Qaeda têm muito em seu favor: os Assad continuam no poder, em companhia de regimes apoiados pelos xiitas em Bagdá e Beirute; os Estados Unidos e a Rússia, a Turquia e o Irã servem como estímulo ao recrutamento; um vácuo institucional e Estados em putrefação; e sua substituição por forças paramilitares e seus líderes.

E então virá o governo Trump, com seus instintos enfáticos, preconceitos inabaláveis, mas direção incerta —uma verdadeira incógnita.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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