Folha de S. Paulo


Ante caos econômico, piratas atacam pescadores na Venezuela

Os piratas mataram o irmão e dois primos de Flaco Marval, e o rumor era de que pretendiam pegar o resto da família.

Assim, o magrinho Flaco e os demais homens da família Marval se apressaram a apanhar as armas que eles mesmos fabricaram com canos de cozinha, fumaram uma droga de cheiro ardido para ganhar energia e saíram pela noite patrulhando as ruas arenosas de sua aldeia. Flaco estava muito alterado.

"Temos de matar esses bandidos, para podermos voltar a pescar como sempre fizemos", ele dizia.

Piratas estão aterrorizando o Estado costeiro venezuelano de Sucre, que um dia abrigou a quarta maior frota mundial de barcos de pesca de atum e uma próspera indústria pesqueira.

Esse setor entrou em colapso, em companhia de virtualmente todas as demais indústrias venezuelanas. Gangues de pescadores desempregados tomam como vítimas aqueles de seus colegas que ainda se aventuram a sair ao mar, roubando o pescado do dia e os motores; os pescadores são amarrados e jogados ao mar, ou às vezes mortos a tiros. Os roubos vêm acontecendo diariamente neste ano, e dezenas de pescadores morreram.

"As pessoas já não podem ganhar a vida pescando, e por isso estão usando seus barcos para as opções que lhes restam: contrabandear gasolina, transportar drogas e praticar pirataria", disse José Antonio García, líder do maior sindicato do Estado.

A economia petroleira da Venezuela, que florescia no passado, está dilapidada sob o governo do presidente Nicolás Maduro. Na região oeste do país, de relevo baixo e conhecida pela pecuária, o gado está morrendo por falta de ração. Os Estados ricos em minérios, no leste, deixaram de produzir metais. No coração agrícola venezuelano, os agricultores esperam em fila para comprar as safras que antes produziam, antes que os fertilizantes desaparecessem. No cinturão petroleiro, as plataformas e refinarias estão silenciosas, e este mês viu o surgimento de filas para comprar gasolina, no país com as maiores reservas petroleiras do planeta.

"Jamais vi uma implosão completa como essa sem que houvesse uma guerra para causá-la", disse o economista venezuelano Alejandro Grisanti, antigo funcionário do banco Barclays Capital.

Na região costeira, a pesca se reduziu a menos de um terço das 120 mil toneladas de atum que a Venezuela produziu em 2004. Em junho, Sucre foi o epicentro de tumultos causados pela falta de alimentos, que se espalharam a todo o país. As famílias de Punta de Araya sobreviveram ao terceiro trimestre comendo "sopa de cachorro", um caldo feito com água do mar e os peixes pequenos demais que costumavam ser devolvidos à água.

"Aquelas pequenas sardinhas salvaram nossas vidas", disse o administrador de bibliotecas Efren Pares.

Desesperados, os venezuelanos estão roubando o que restou de uma era mais próspera, furtando as redes, os geradores elétricos e os motores de popa dos barcos de pesca. As quentes águas do Mar do Caribe estão se tornando cada vez mais um sombrio campo de batalha.

Sete membros da família Marval estavam se preparando para voltar para casa, certa noite de setembro, quando ouviram tiros.

"Não há como fugir quando seu barco está parado na água, e por isso comecei a rezar para que Deus os levasse a partir sem nos ferir", conta Edecio Marval, 42.

Em lugar disso, depois de roubarem o motor de popa do barco e os peixes pescados naquela noite, os homens mataram a tiros o filho mais velho de Edecio, que havia passado a noite fazendo todo mundo rir com suas piadas sem graça, e dois outros pescadores.

Quando estavam se preparando para matar o sobrinho adolescente de Edecio, um pirata gritou para que os outros parassem. "Não, esse é meu amigo", ele disse. Os dois haviam pescado juntos até o ano anterior.

Assim, os agressores partiram, deixando os membros sobreviventes da família Marval, aos quais só restava sinalizar com suas lanternas em meio às trevas, chorando enquanto os corpos de seus parentes esfriavam ao lado deles.

Voltando ao lar, na aldeia de Punta de Araya, eles reportaram à polícia que haviam reconhecido o líder dos piratas: era El Beta, 19, um assassino que comanda 40 homens e vive a cerca de 800 metros de distância da aldeia.

El Beta começou a ligar para Flaco Marval, ameaçando voltar e exterminar a família toda.

"Seu irmão chorou como um fresquinho quanto eu o matei. E agora vou voltar e apanhar vocês todos, alcaguetes", ele disse, em uma mensagem de voz intimidadora que a família entregou à polícia.

Os Marval tomaram medidas para se proteger. Deixaram de ir ao hospital do governo, colina acima, porque a área era controlada por El Beta. Seus filhos pararam de ir à escola. E eles começaram a patrulhar a aldeia todas as noites.

"Não é seguro sair de casa", disse Tibisay Marval, cujo filho foi assassinado pelos piratas.

Sucre é um dos Estados mais pobres da Venezuela e sempre foi um reduto da revolução socialista lançada pelo presidente Hugo Chávez, morto em 2013. Mas o apoio a ela começou a se reduzir quando o governo estatizou a maior companhia de pesca da região, a Pescalba, em 2010, com resultados no geral desastrosos. Em um dia de trabalho recente, mais de metade da frota da empresa estava atracada no porto, ociosa, com barcos exibindo buracos nos conveses e cascos enferrujados.

O porto está tão silencioso que parece que os trabalhadores estão em greve. Muitas empresas privadas partiram para outros países, porque o governo exige que vendam metade de seu pescado na moeda venezuelana, o bolívar, cujo valor é virtualmente zero.

"Nós pescadores sabemos o que significa trabalhar, mas não podemos trabalhar se não tivermos com que trabalhar", disse Fernando Patino, 57.

Em outubro, piratas deixaram Patino e seu irmão amarrados em seu pequeno bote a motor, a quilômetros da costa. Patino conseguiu se soltar e os dois passaram sete horas remando de volta para casa usando uma tábua arrancada da lateral do barco.

Na noite em que estavam preparados para enfrentar El Beta, Flaco avistou um soldado armado com um fuzil de assalto Kalashnikov, escondido atrás de um poste de luz. Não demorou para que as ruas se enchessem de aldeões, esperançosos de que a guarda costeira apanhasse um grupo de piratas.

"Vamos ver se eles matam alguém!", gritou um vizinho.

A multidão cercou os soldados, que estavam carregando três pessoas para um caminhão. Mas os aldeões começaram a protestar, afirmando que eles estavam prendendo os caras errados; os detidos eram conhecidos dos aldeões, e eram pescadores honestos. Os soldados os liberaram.

As mulheres começaram a cercar um tenente. Por que ele não ajudava os pescadores a recuperar seus motores? Quando ele faria alguma coisa contra El Beta?

O tenente pediu paciência. Mas mais tarde confessou que também gostaria de ver El Beta morto.

Cinco soldados haviam sido encarregados de invadir uma aldeia vizinha e matar nove membros de uma família de pescadores que eram vistos por quase todos como integrantes de uma gangue. As forças de segurança do Estado também mataram três suspeitos de pirataria no mar, este ano, e detiveram um dos homens de El Beta pelos homicídios contra a família Marval. Mas os oficiais relutam em realizar detenções em massa porque as prisões já estão lotadas, e os prisioneiros precisam se revezar para dormir.

"Quem ouve falar em pirataria pensa em sujeitos roubando navios porta-contêineres na África. Mas aqui temos pescadores pobres roubando outros pescadores pobres", disse Luis Morales, um advogado de Sucre. "É o mesmo tipo de crime que vemos nas ruas, mas agora no mar. Amanhã, o mesmo vai acontecer nas fazendas e nas montanhas".

Pouco depois que soldados deixaram Punta de Araya, as mulheres da família Marval começaram a receber avisos, de amigos na área controlada por El Beta, de que 15 membros da sua gangue estavam preparando um ataque.

As mulheres debateram se deviam ou não chamar de volta a guarda costeira, correndo o risco de serem vistas como dedo-duros. Quando por fim decidiram ligar, a eletricidade e o sinal de celular da aldeia foram cortados, como se por uma força hostil. Em pânico, elas alertaram Flaco e os demais.

Os primos correram ao seu arsenal composto por pistolas e rifles feitos em casa, escondidos em um paiol de blocos de concreto no qual um lençol servia de porta.

Rindo diante dos acessos de tosse uns dos outros, eles fumaram maconha reforçada por cocaína, usando um longo cachimbo de vidro feito com uma lâmpada fluorescente. Tentaram se preparar para a batalha ouvindo de novo a mensagem ameaçadora de El Beta, unidos em torno de um velho celular meio quebrado.

"Lembra-se de como costumávamos dormir na praia com dinheiro no bolso?", disse um dos primos.

"Isso não vai acabar até que alguém mate aquele cara", disse outro.

Subitamente, os cachorros começaram a latir. Os jovens saíram à rua, para ver se a gangue estava a caminho. Ficaram em patrulha por horas, parando de vez em quando para fumar mais um pouco.

Por fim, os latidos se aquietaram. A energia voltou. El Beta não apareceu.

As mulheres da família Marval ficaram acordadas até o amanhecer, jogando dominó, perto de um altar em honra dos três parentes mortos. Petra Marval, tia de Flaco, diz que elas se preocupam com os jovens da família, mas não veem outra opção.

"Flaco pode ser morto nas ruas", ela disse. "Mas também pode ser morto no mar".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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